QUINCAS BORBA - CAPÍTULO 151 AO 160
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CAPÍTULO CLI TÃO RÁPIDO FOI TUDO, que Sofia perdeu a voz e o movimento; mas, ao cabo de alguns segundos -Que é isto?... Sr. Rubião, mande parar o carro. -Parar? Mas a senhora não me disse que ia sair e esperava por ele? -Não ia sair com o senhor. . . Não vê que. . . Mande parar. . . Desatinada, quis ordenar ao cocheiro que parasse; mas o receio de um possível escândalo fê-la deter-se a meio caminho. O coupé entrara na Rua Bela da Princesa. Sofia novamente pediu a Rubião que advertisse na inconveniência de irem assim, à vista de Deus e de todo mundo. Rubião respeitou o escrúpulo, e propôs que descessem as cortinas. -Eu acho que não faz mal que nos vejam, explicou Rubião; mas, fechando as cortinas, ninguém nos vê. Se quer? Sem aguardar resposta, desceu as cortinas de um e outro lado, e ficaram os dous a sós, porque, se de dentro podiam ver uma ou outra pessoa que passasse, de fora ninguém os via. Sós, completamente sós, como naquele dia em que às mesmas duas horas da tarde, em casa dela, Rubião lhe lançou em rosto os seus desesperos. Lá, ao menos, a moça estava livre; aqui, dentro do carro fechado, não podia calcular as conseqüências. Rubião, entretanto, acomodara as pernas e não dizia nada.
CAPÍTULO CLII SOFIA ENCOLHERA- SE muito ao canto. Podia ser estranheza da situação, podia ser medo, mas era principalmente repugnância. Nunca esse homem lhe fez sentir tanta aversão, asco, ou outra cousa menos dura, se querem, mas que se reduzia à incompatibilidade,-como direi que não agrave os ouvidos?a incompatibilidade da epiderme. Onde iam os sonhos de há poucos dias? Ao simples convite de um passeio, a sós, à Tijuca, subiu com ele a montanha, a galope, desmontou, ouviu palavras de adoração, e sentiu um beijo na nuca. Onde iam essas imaginações? Onde iam os olhos fixos e grandes, as mãos amigas e longas, os pés inquietos, as palavras meigas e os ouvidos cheios de misericórdia? Tudo esqueceu, tudo desapareceu, agora que ambos se achavam deveras sós, insulados pelo carro e pelo escândalo. E os cavalos continuavam a andar, sacudindo as patas, arrastando lentamente o carro, pelas pedras da Rua Bela da Princesa. Que faria ela chegando ao Catete? Iria à cidade com ele? Pensou em seguir para a casa de alguma amiga, deixá- lo-ia dentro, diria ao cocheiro que se fosse embora. Contaria tudo ao marido. No meio daquela agonia, atravessaram-lhe o cérebro algumas memórias banais o estranhas à situação, como a notícia de um roubo de jóias lida de manhã nos jornais, a ventania da véspera, um chapéu. Afinal fixou-se em um só cuidado. Que lhe ia dizer o Rubião? Viu que ele continuava a olhar para a frente, calado, com o castão da bengala no queixo. Não lhe ficava mal a atitude, tranqüila, séria, quase indiferente; mas então para que se meteu no carro? Sofia quis romper o silêncio; por duas vezes moveu nervosamente as mãos; quase que a irritou a quietação do homem, cuja ação só podia ser explicada pela paixão antiga e violenta. Depois, imaginou que ele próprio estaria arrependido, e disse-lho em bons termos. -Não vejo que me possa arrepender de cousa nenhuma, acudiu ele, voltando-se. Quando a senhora disse que era mau irmos assim, à vista do público, abaixei as cortinas. Não concordei, mas obedeci -Chegamos ao Catete, atalhou ela; quer que o leve a casa? Não podemos ir juntos para a cidade. -Podemos andar à toa. -Como? -A toa, os cavalos vão andando e nós vamos conversando, sem que nos ouçam nem adivinhem... -Pelo amor de Deus! não me fale assim; deixe-me, saia do carro, ou eu saio aqui mesmo, e o senhor toma conta dele. Que que quer dizer? Bastam poucos minutos... Olhe, já dobramos para o lado da cidade; mande ir para Botafogo, vou deixá-lo à porta de casa . . . -Mas eu saí há pouco de casa, vou para a cidade. Que mal há em levar-me até lá? Se é para que não nos vejam, apeio-me, em qualquer lugar, -na Praia de Santa Luzia, por exemplo,-do lado do mar... -O melhor é descer aqui mesmo. -Mas por que não iremos até à cidade? -Não, não pode ser. Peço-lhe por tudo que lhe for mais sagrado! Não faça escândalo. vamos, diga-me o que é preciso para obter uma cousa tão simples? Quer que me ajoelhe aqui mesmo? Apesar da estreiteza do espaço, ia dobrando os joelhos; mas Rubião deu-se pressa em fazê-la sentar-se outra vez. -Não é preciso que se ajoelhe, disse com brandura. -Obrigada; peço-lhe então por Deus, por sua mãe, que está no céu... -Deve estar no céu, confirmou Rubião. Era uma santa senhora! As mães são sempre boas; mas daquela, ninguém que a conheceu poderá dizer outra cousa senão que era uma santa. E prendada, como pousas. Que dona de casa! Hóspedes, para ela, tanto fazia cinco como cinqüenta, era a mesma cousa, cuidava de tudo a tempo e a hora, e criou fama. Os escravos davam-lhe o nome de Sinhá Mãe, porque era realmente, mãe para todos. Deve estar no céu! -Bem, bem, atalhou Sofia. Pois faça-me isto por amor de sua mãe; faz? -Isto quê? -Apear-se aqui mesmo. -E ir a pé para a cidade? Não posso. É cisma sua; ninguém nos vê. E depois estes seus cavalos são magníficos. Já reparou como atiram as patas, lentamente, plás... plás... plás... plás... Cansada de pedir, Sofia calou-se, cruzou os braços e coseu-se ainda mais, se era possível, ao cantinho do carro. -Agora me lembro, pensou ela; mando parar à porta do armazém do Cristiano; digo-lhe o modo por que este homem se introduziu no coupé, os pedidos que lhe fiz e as respostas que me deu. Antes isso que fazê-lo apear misteriosamente em qualquer rua. Entretanto, Rubião estava quieto. De vez em quando, volvia no dedo o anel de brilhante,-um solitário esplêndido. Não olhava para ela, não lhe dizia nem pedia nada. Iam como um casal de aborrecidos. Sofia começava a não entender que razão o teria levado a entrar no carro. Necessidade de transporte não podia ser. Vaidade, também não; fechara as cortinas, à sua primeira queixa de publicidade. Nenhuma palavra amorosa, uma alusão remota que fosse, a medo, cheia de veneração e súplica. Era um inexplicável, um monstro.
CAPÍTULO CLIII -SOFIA... disse de repente Rubião; e continuou com pausa- Sofia, os dias passam, mas nenhum homem esquece a mulher que verdadeiramente gostou dele, ou então não merece o nome de homem. Os nossos amores não serão esquecidos nunca,-por mim, está claro, e estou certo que nem por ti. Tudo me deste, Sofia; a tua própria vida correu perigo. Verdade que eu te vingaria, minha bela. Se a vingança pode alegrar os mortos, terias o maior prazer possível. Felizmente, o meu destino protegeu-nos, e pudemos amar sem peias nem sangue... A moça olhava espantada. -Não te espantes, continuou ele; não nos vamos separar; não, não te falo de separação. Não me digas que morrerias; sei que havias de chorar muitas lágrimas. Eu não,-que não vim ao mundo para chorar,-mas nem por isso a minha dor seria menor; ao contrário, as dores guardadas no coração doem mais que as outras. Lágrimas são boas porque a pessoa desabafa. Querida amiga, falo-te assim, porque é preciso termos cautela; a nossa insaciável paixão pode esquecer esta necessidade. Temos facilitado muito, Sofia; como nascemos um para o outro, parece-nos que estamos casados, e facilitamos. Ouve, querida, ouve, alma da minha alma... A vida é bela! A vida é grande! a vida é sublime! Contigo, porém, que nome haverá que lhe possa dar? Lembras-te da nossa primeira entrevista? Rubião disse esta última palavra, querendo pegar-lhe na mão. Sofia recuou a tempo; estava desorientada, não entendia e tinha medo . A voz dele crescia, o cocheiro podia ouvir alguma cousa... uma suspeita a abaloutalvez o intento de Rubião fosse justamento fazer-se ouvir, para obrigá-la pelo terror,-ou então para que a abocanhassem. Teve ímpeto de atirarse a ele, gritar que lhe acudissem, e salvar-se pelo escândalo. Ele baixinho, depois de curta pausa -A mim lembra-me, como se fosse ontem. Tu chegaste de carro, não era este; era um carro de praça, uma caleça. Desceste medrosa, com o véu pela cara; tremias como varas verdes... Mas os meus braços te ampararam... O sol daquele dia devia ter parado, como quando obedeceu a Josué... E contudo, minha flor, aquelas horas foram compridas como diabo, não sei por que; a rigor, deviam ser curtas. Era talvez porque a nossa paixão não acabava mais, não acabou, nem há de acabar nunca... Em compensação, não vimos mais o sol; ia caindo para o outro lado das montanhas quando minha Sofia, ainda medrosa, saiu para a rua, e pegou de outra caleça. Outra ou a mesma? Creio que foi a mesma. Não imaginas como fiquei; parecia tonto, beijei tudo em que havias tocado; cheguei a beijar a soleira da porta. Creio que já te contei isto. A soleira da porta. E estive quase a ir de rastos, beijar os degraus da escada. . . Não o fiz, recolhi-me, fechei-me para que se não perdesse o teu cheiro; violeta, se bem me recordo... Não, não era possível que o intuito de Rubião fosse fazer crer ao cocheiro uma aventura mentirosa. A voz era tão sumida que Sofia mal podia escutá-la mas, se lhe custava entender as palavras, não chegava a compreender o sentido delas. A que vinha aquela história não sucedida? Quem quer que a ouvisse, aceitaria tudo por verdade, tal era a nota sincera, a meiguice dos termos e a verossimilhança dos pormenores. E ele continuou suspirando as belas reminiscências . . . -Mas que caçoada é essa? atalhou finamente Sofia. Não lhe respondeu o nosso amigo;-tinha a imagem diante dos olhos, não ouviu a pergunta, e foi andando. Citou-lhe um concerto de Gottschalk. O divino pianista melodiava ao piano; eles ouviam, mas o demônio da música levou os olhos de um para outro, e ambos esqueceram o resto. Quando a música cessou, as palmas romperam, e eles acordaram. Ai tristes! acordaram com o olhar do Palha em cima deles, um olho de onça brava. Nessa noite cuidou que ele a matasse. -Senhor Rubião... -Napoleão, não; chama-me Luís. Sou o teu Luís, não é verdade, galante criatura? Teu, teu. .. Chama-me teu; o teu Luís, o teu querido Luís. Ai, se tu soubesses o gosto que me dás quando te ouço essas duas palavras"Meu Luís!" Tu és a minha Sofia,-a doce, a mimosa Sofia da minha alma. Não percamos estes momentos; vamos dizer nomes ternos- mas, baixo, baixinho, para que os malandros da almofada do carro não escutem. Para que há de haver cocheiros neste mundo? Se o carro andasse por si, a gente falava à vontade, e iria ao fim da Terra. Já então iam costeando o Passeio Público; Sofia não deu por isso. olhava fixamente para Rubião; não podia ser cálculo de perverso, nem lhe atribuía mofa. . . Delírio, sim, é o que era; tinha a sinceridade da palavra, como pessoa que vê ou viu realmente as coisas que relata. "É preciso pô-lo fora daqui", pensou a moça. E aparelhando-se de coragem-Onde estaremos nós? perguntou-lhe. É ocasião de separar-nos. Veja do lado de lá; onde estamos? Parece que é o convento; estamos no Largo da Ajuda. Diga ao cocheiro que pare; ou, se quer, pode apear-se no Largo da Carioca. Meu marido. . . -Vou nomeá-lo embaixador, disse Rubião. Ou senador, se quiser. Senador é melhor; ficam os dous aqui. Embaixador que fosse, não consentiria que tu o acompanhasses, e as más línguas... Tu sabes a oposição que sofro, as calúnias. . . Ah! ruim gente! Convento da Ajuda, disseste? Que tens tu com ele? Queres ser freira? -Não; digo que já passamos o convento da Ajuda. Vou deixá-lo no Largo da Carioca. Ou vamos até o armazém de meu marido? Sofia tornou a apegar-se ao segundo alvitre; não se faria suspeita ao cocheiro, provaria melhor a sua inocência ao Palha, narrando-lhe tudo, desde a entrada inesperada no carro até o delírio. E que delírio era esse? Sofia pensou que o motivo podia ser ela própria, e esta conjetura fê-la sorrir de piedade. -Para quê? disse Rubião. Vou apear-me aqui mesmo, é mais seguro. Para que há de ele desconfiar de nós e maltratar-te? Posso castigá-lo, mas sempre me ficaria o remorso do mal que ele te causaria. Não, linda flor amiga; o vento que se atrevesse a tocar em tua pessoa, acredita que eu mandaria pôr fora do espaço, como um vento indigno. Tu ainda não conheces bem o meu poder, Sofia; anda, confessa. Como Sofia não confessasse nada, Rubião chamou-lhe de bonita, e ofereceu-lhe o solitário que tinha no dedo; ela, porém, conquanto amasse as jóias e tivesse a intuição dos solitários, recusou medrosamente a oferta. -Compreendo o escrúpulo, disse ele; mas não perdes por isso, porque hás de receber outra pedra ainda mais bela, e pela mão de teu marido. Far-te-ei duquesa. Ouviste? O título é dado a ele, mas é que és a causa. Duque. . . Duque de quê? Vou ver um título bonito; ou então escolhe tu mesma, porque é para ti, não é para ele, é para ti, minha mimosa. Não é preciso escolher já, vai para casa e pensa. Não te vexes; manda-me dizer o que achares mais bonito, e faço lavrar imediatamente o decreto. Também podes fazer outra cousaescolhe, e diz-me no nosso primeiro encontro, no lugar do costume. Quero ser o primeiro que te chame duquesa. Querida duquesa... O decreto virá depois. Duquesa da minha alma! -Sim, sim, disse ela desvairadamente, mas avisemos o cocheiro que nos leve até a casa de Cristiano. -Não, apeio-me aqui... Pára! pára! Rubião ergueu as cortinas, e o lacaio veio abrir a portinhola. Sofia, para tirar toda a suspeita a este, pediu novamente ao Rubião que fosse com ela à casa do marido; disse-lhe que este precisava falar-lhe com urgência. Rubião olhou um pouco espantado para ela, para o lacaio e para a rua; e respondeu que não, que iria depois.
CAPÍTULO CLIV APENAS SEPARADOS, deu-se em ambos um contraste. Rubião, na rua, voltou a cabeça para todos os lados, a realidade apossava-se dele e o delírio esvaía-se. Andava, estacava diante de uma loja, atravessava a rua, detinha um conhecido, pedia-lhe notícias e opiniões; esforço inconsciente para sacudir de si a personalidade emprestada. Ao contrário, Sofia, passado o susto e o espanto, mergulhou no devaneio; todas as referências e histórias mentirosas de Rubião como que lhe davam saudades,-saudades de quê?-"saudades do céu" que é o que dizia o Padre Bernardes do sentimento de um bom cristão. Nomes diversos relampejavam no azul daquela possibilidade Quanto pormenor interessante! Sofia reconstruiu a caleça velha, onde entrou rápida, donde desceu trêmula, para esgueirar-se pelo corredor dentro, subir a escada, e achar um homem,-que lhe disse os mimos mais apetitosos deste mundo, e os repetiu agora, ao pé dela, no carro mas não era, não podia ser o Rubião. Quem seria? Nomes diversos relampejavam no azul daquela possibilidade.
CAPÍTULO CLV ESPALHOU-SE a nova da mania de Rubião . Alguns, não o encontrando nas horas do delírio, faziam experiências, a ver se era verdadeiro o boato; encaminhavam a conversação para os negócios de França do imperador. Rubião resvalava ao abismo, e convencia-os.
CAPÍTULO CLVI PASSARAM-SE alguns meses, veio a guerra franco-prussiana, e as crises de Rubião tornaram-se mais agudas e menos espaçadas. Quando as malas da Europa chegavam cedo, Rubião saía de Botafogo, antes do almoço, e corria a esperar os jornais; comprava a Correspondência de Portugal, e ia lê-la no Carceler. Quaisquer que fossem as notícias dava-lhes o sentido da vitória. Fazia a conta dos mortos e feridos, e achava sempre um grande saldo a seu favor. A queda de Napoleão III foi para ele a captura do rei Guilherme, a revolução de 4 de setembro um banquete de bonapartistas. Em casa, os amigos do jantar não se metiam a dissuadi-lo. Também não confirmavam nada, por vergonha uns dos outros; sorriam e desconversavam. Todos, entretanto, tinham as suas patentes militares, o Marechal Torres, o Marechal Pio, o Marechal Ribeiro, e acudiam pelo título. Rubião via-os fardados; ordenava um reconhecimento, um ataque, e não era necessário que eles saíssem a obedecer; o cérebro do anfitrião cumpria tudo. Quando Rubião deixava o campo de batalha para tornar à mesa, esta era outra. Já sem prataria, quase sem porcelana nem cristais, ainda assim aparecia aos olhos de Rubião regiamente esplêndida. Pobres galinhas magras eram graduadas em faisões; picados triviais, assados de má morte traziam o sabor das mais finas iguarias da terra. Os comensais faziam algum reparo, entre si,-ou ao cozinheiro,-mas Luculo ceava sempre com Luculo. Toda a mais casa, gasta pelo tempo e pela incúria, tapetes desbotados, mobílias truncadas e descompostas, cortinas enxovalhadas, nada tinha o seu atual aspecto, mas outro, lustroso e magnífico. E a linguagem era também diversa, rotunda e copiosa, e assim os pensamentos, alguns extraordinários , como os do finado amigo Quincas Borba,-teorias que ele não entendera, quando lhas ouvira outrora, em Barbacena, e que ora repetia com lucidez, com alma,- às vezes, empregando as mesmas frases do filósofo. Como explicar essa repetição do obscuro, esse conhecimento do inextricável, quando os pensamentos e as palavras pareciam ter ido com os ventos de outros dias? E por que todas essas reminiscências desapareciam com a volta da razão?
CAPÍTULO CLVII A COMPAIXÃO DE SOFIA, - explicado o mal de Rubião pelo amor que ele lhe tinha,-era um sentimento médio, não simpatia pura nem egoísmo ferrenho, mas participando de ambos. Uma vez que evitasse alguma situação idêntica à do coupé, tudo ia bem. Nas horas em que Rubião estava lúcido, escutava-o e falava-lhe com interesse, -até porque a doença, dando-lhe audácia nos momentos de crise, dobrava-lhe a timidez nas horas normais. Não sorria, como o Palha, quando Rubião subia ao trono ou comandava um exército. Crendo-se autora do mal, perdoava-lho; a idéia de ter sido amada até à loucura, sagrava-lhe o homem.
CAPÍTULO CLVIII -POR QUE NÃO O TRATAM? perguntou uma noite D. Fernanda, que ali o conhecera no ano anterior; pode ser que se cure. -Parece que não é cousa grave, acudiu o Palha; tem desses acessos, mas assim mansos, como viu, idéias de grandeza, que passam logo; e repare que, fora daquilo, conversa perfeitamente. Contudo, pode ser... Que acha V. Ex.a? Teófilo, o marido de D. Fernanda, responde que sim, que era possível. -Que fazia ele, ou que faz agora? continuou o deputado. -Nada, nem agora nem antes. Era rico,-mas gastador. Conhecemo-lo quando veio de Minas, e fomos, por assim dizer, o seu guia no Rio de Janeiro, aonde não voltara desde longos anos. Bom homem. Sempre com luxo, lembra-se? Mas, não há riqueza inesgotável, quando se entra pelo capital; foi o que ele fez. Hoje creio que tenha pouco... -Podia salvar-lhe esse pouco, fazendo-se nomear curador, enquanto ele se trata. Não sou médico, mas pode ser que esse amigo fique bom. -Não digo que não. Realmente, é pena. . . Dá-se com todos e presta seus serviços. Sabe que esteve para ser nosso parente? Pois não? Quis casar com Maria Benedita. -A propósito de Maria Benedita, interrompeu D. Fernanda, ia me esquecendo que trago uma carta dela para mostrar à senhora; recebi-a ontem. Já há de saber que, em breve, estão de volta? Está aqui. Entregou a carta a Sofia, que a abriu sem entusiasmo, e a leu com tédio. Era mais que uma vulgar carta transatlântica, era um depósito moral, uma confissão íntima e completa de pessoa feliz e agradecida. Contava os mais recentes episódios da viagem, desordenadamente, porque os viajantes eram sobrepostos a tudo, e as mais belas obras do homem ou da natureza valiam menos que os olhos que as miravam. Às vezes, um incidente de hospedaria ou de rua comia mais papel e trazia mais interesse que outros, pela razão de pôr em relevo as qualidades do marido. Maria Benedita amava tanto ou ainda mais que no primeiro dia. No fim, a medo em post scriptum, pedindo que o não dissesse a ninguém, confessava que era mãe. Sofia dobrou o papel, não já com tédio, senão com despeito, e por dous motivos que se contradizem; mas a contradição deste mundo. Cotejada aquela carta com as que recebera de Maria Benedita, dir-se-ia que ela era apenas uma conhecida, sem outro laço de sangue ou de afeto; e, contudo, não quereria ser confidente daquela felicidade cochichada do outro lado do oceano, cheia de minúcias, de adjetivos, de exclamações, do nome de Carlos Maria, dos olhos de Carlos Maria, dos ditos de Carlos Maria, finalmente do filho de Carlos Maria. Parecia acinte, e quase fazia crer na cumplicidade de D. Fernanda. Hábil, sabendo domar-se a tempo, Sofia dissimulou o despeito, e restituiu sorrindo a carta da prima. Quis dizer que, pelo texto, a felicidade de Maria Benedita devia estar intacta como a levara daqui, mas a voz não lhe passou da garganta. D. Fernanda é que se incumbiu da conclusão -Vê-se bem que é feliz? -Parece que sim. CAPÍTULO CLIX SE A MANHÃ SEGUINTE não fosse chuvosa, outra seria a disposição de Sofia. O sol nem sempre é oficial de boas idéias; mas, ao menos, permite sair, e a troca do espetáculo muda as sensações. Quando Sofia acordou, já a chuva caía grossa e contínua, e o céu e o mar era tudo um, tão baixas estavam as nuvens, tão espessa era a cerração. Tédio por dentro e por fora. Nada em que espraiasse a vista e descansasse a alma. Sofia meteu a alma em um caixão de cedro, encerrou o de cedro no caixão de chumbo do dia. E deixou-se estar sinceramente defunta. Não sabia que os defuntos pensam, que um enxame de noções novas vem substituir as velhas, e que eles saem criticando o mundo como os espectadores saem do teatro criticando a peça e os atores. A defunta sentiu que algumas noções e sensações continuavam a vida. Vinham de mistura, mas tinham um ponto de partida comum,-a carta da véspera e as recordações que lhe trouxe de Carlos Maria. Em verdade, cuidara ter arredado para longe essa figura aborrecida, e ei-la que reaparecia, que sorria, que a fitava, que lhe sussurrava ao ouvido as mesmas palavras do vadio egoísta e enfatuado, que a convidou um dia à valsa do adultério e a deixou sozinha no meio do salão. A volta dessa vinham outras; Maria Benedita, por exemplo, um caco de gente, que ela foi buscar à roça para lhe dar lustre de cidade, e que esqueceu todos os benefícios para só se lembrar das suas ambições. E D. Fernanda também, madrinha dos seus amores, que de caso pensado, trouxera na véspera a carta de Maria Benedita com o post scriptum confidencial. Não advertiu que o prazer da amiga bastava a explicar o esquecimento da parte reservada da carta; menos ainda indagou se a natureza moral de D. Fernanda comportava essa suposição. Vieram assim outras cogitações e imagens, e tornaram as primeiras, e todas se iam ligando e desligando. Entre elas, apareceu uma lembrança da véspera. O marido de D. Fernanda envolvera Sofia em um grande olhar de admiração. Ela, em verdade, estava nos seus melhores dias; o vestido sublinhava admiravelmente a gentileza do busto, o estreito da cintura e o relevo delicado das cadeiras;-era foulard, cor de palha. -Cor de palha, acentuou Sofia rindo, quando D. Fernanda o elogiou, pouco depois de entrar; cor de palha, como uma lembrança deste senhor. Não é fácil dissimular o prazer da lisonja; o marido sorriu cheio de vaidade, procurando ler nos olhos dos outros o efeito daquela prova minuciosa de amor. Teófilo elogiou também o vestido, mas era difícil mirá-lo sem mirar também o corpo da dona; dali, os olhos compridos que lhe deitou, sem concupiscência, é certo, e quase sem reincidência. Pois essa lembrança da véspera, um gesto sem convite, uma admiração sem desejo, veio meter-se de permeio agora, quando Sofia cuidava na maldade da outra. Carlos Maria Teófilo... Outros nomes relampejavam no céu daquela possibilidade, como ficou expresso no cap. CLIV. E vieram todos agora, porque a chuva continuando a cair o céu e o mar estavam ainda unidos pela mesma cerração. Vieram todos esses nomes, com os próprios sujeitos correspondentes, e até vieram sujeitos sem nomes,-os adventícios e ignorados,- que uma só vez passaram por ela, cantaram o hino da admiração e receberam o óbolo da boa vontade. Por que não reteve algum de tantos, para ouvi-lo cantar e enriquecê-lo? Não é que os óbulos enriqueçam a ninguém, mas há outras moedas de maior valia. Por que não reteve um de tantos nomes elegantes, e até egrégios? Essa pergunta sem palavras correu-lhe assim pelas veias, pelos nervos, pelo cérebro, sem outra resposta mais que a agitação e a curiosidade.
CAPÍTULO CLX NISTO, A CHUVA CESSOU um pouco, e um raio de sol logrou rompeu o nevoeiro,-um desses raios úmidos que parecem vir de olhos que choraram. Sofia cuidou que ainda podia sair; estava inquieta por ver, por andar, por sacudir aquele torpor, e esperou que o sol varres se a chuva e tomasse conta do céu e da terra; mas o grande astro percebeu que a intenção dela era constituí-lo lanterna de Diógenes e disse ao raio úmido"Volta, volta ao meu seio, raio casto e virtuoso; não vás tu conduzi-la onde o seu desejo a quer levar. Que ame, se lhe parece; que responda aos bilhetes namorados,-se os recebe e não queima,-não lhe sirvas tu de archote, luz do meu seio, filho das minhas entranhas, raio, irmão dos meus raios. " E o raio obedeceu, recolhendo-se ao foco central, um pouco espantado do temor do sol, que tem visto tantas cousas ordinárias e extraordinárias. Então o véu de nuvens fez-se outra vez espesso, e mais escuro, e a chuva tornou a cair em grandes bátegas.
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CAPÍTULO CLI TÃO RÁPIDO FOI TUDO, que Sofia perdeu a voz e o movimento; mas, ao cabo de alguns segundos -Que é isto?... Sr. Rubião, mande parar o carro. -Parar? Mas a senhora não me disse que ia sair e esperava por ele? -Não ia sair com o senhor. . . Não vê que. . . Mande parar. . . Desatinada, quis ordenar ao cocheiro que parasse; mas o receio de um possível escândalo fê-la deter-se a meio caminho. O coupé entrara na Rua Bela da Princesa. Sofia novamente pediu a Rubião que advertisse na inconveniência de irem assim, à vista de Deus e de todo mundo. Rubião respeitou o escrúpulo, e propôs que descessem as cortinas. -Eu acho que não faz mal que nos vejam, explicou Rubião; mas, fechando as cortinas, ninguém nos vê. Se quer? Sem aguardar resposta, desceu as cortinas de um e outro lado, e ficaram os dous a sós, porque, se de dentro podiam ver uma ou outra pessoa que passasse, de fora ninguém os via. Sós, completamente sós, como naquele dia em que às mesmas duas horas da tarde, em casa dela, Rubião lhe lançou em rosto os seus desesperos. Lá, ao menos, a moça estava livre; aqui, dentro do carro fechado, não podia calcular as conseqüências. Rubião, entretanto, acomodara as pernas e não dizia nada.
CAPÍTULO CLII SOFIA ENCOLHERA- SE muito ao canto. Podia ser estranheza da situação, podia ser medo, mas era principalmente repugnância. Nunca esse homem lhe fez sentir tanta aversão, asco, ou outra cousa menos dura, se querem, mas que se reduzia à incompatibilidade,-como direi que não agrave os ouvidos?a incompatibilidade da epiderme. Onde iam os sonhos de há poucos dias? Ao simples convite de um passeio, a sós, à Tijuca, subiu com ele a montanha, a galope, desmontou, ouviu palavras de adoração, e sentiu um beijo na nuca. Onde iam essas imaginações? Onde iam os olhos fixos e grandes, as mãos amigas e longas, os pés inquietos, as palavras meigas e os ouvidos cheios de misericórdia? Tudo esqueceu, tudo desapareceu, agora que ambos se achavam deveras sós, insulados pelo carro e pelo escândalo. E os cavalos continuavam a andar, sacudindo as patas, arrastando lentamente o carro, pelas pedras da Rua Bela da Princesa. Que faria ela chegando ao Catete? Iria à cidade com ele? Pensou em seguir para a casa de alguma amiga, deixá- lo-ia dentro, diria ao cocheiro que se fosse embora. Contaria tudo ao marido. No meio daquela agonia, atravessaram-lhe o cérebro algumas memórias banais o estranhas à situação, como a notícia de um roubo de jóias lida de manhã nos jornais, a ventania da véspera, um chapéu. Afinal fixou-se em um só cuidado. Que lhe ia dizer o Rubião? Viu que ele continuava a olhar para a frente, calado, com o castão da bengala no queixo. Não lhe ficava mal a atitude, tranqüila, séria, quase indiferente; mas então para que se meteu no carro? Sofia quis romper o silêncio; por duas vezes moveu nervosamente as mãos; quase que a irritou a quietação do homem, cuja ação só podia ser explicada pela paixão antiga e violenta. Depois, imaginou que ele próprio estaria arrependido, e disse-lho em bons termos. -Não vejo que me possa arrepender de cousa nenhuma, acudiu ele, voltando-se. Quando a senhora disse que era mau irmos assim, à vista do público, abaixei as cortinas. Não concordei, mas obedeci -Chegamos ao Catete, atalhou ela; quer que o leve a casa? Não podemos ir juntos para a cidade. -Podemos andar à toa. -Como? -A toa, os cavalos vão andando e nós vamos conversando, sem que nos ouçam nem adivinhem... -Pelo amor de Deus! não me fale assim; deixe-me, saia do carro, ou eu saio aqui mesmo, e o senhor toma conta dele. Que que quer dizer? Bastam poucos minutos... Olhe, já dobramos para o lado da cidade; mande ir para Botafogo, vou deixá-lo à porta de casa . . . -Mas eu saí há pouco de casa, vou para a cidade. Que mal há em levar-me até lá? Se é para que não nos vejam, apeio-me, em qualquer lugar, -na Praia de Santa Luzia, por exemplo,-do lado do mar... -O melhor é descer aqui mesmo. -Mas por que não iremos até à cidade? -Não, não pode ser. Peço-lhe por tudo que lhe for mais sagrado! Não faça escândalo. vamos, diga-me o que é preciso para obter uma cousa tão simples? Quer que me ajoelhe aqui mesmo? Apesar da estreiteza do espaço, ia dobrando os joelhos; mas Rubião deu-se pressa em fazê-la sentar-se outra vez. -Não é preciso que se ajoelhe, disse com brandura. -Obrigada; peço-lhe então por Deus, por sua mãe, que está no céu... -Deve estar no céu, confirmou Rubião. Era uma santa senhora! As mães são sempre boas; mas daquela, ninguém que a conheceu poderá dizer outra cousa senão que era uma santa. E prendada, como pousas. Que dona de casa! Hóspedes, para ela, tanto fazia cinco como cinqüenta, era a mesma cousa, cuidava de tudo a tempo e a hora, e criou fama. Os escravos davam-lhe o nome de Sinhá Mãe, porque era realmente, mãe para todos. Deve estar no céu! -Bem, bem, atalhou Sofia. Pois faça-me isto por amor de sua mãe; faz? -Isto quê? -Apear-se aqui mesmo. -E ir a pé para a cidade? Não posso. É cisma sua; ninguém nos vê. E depois estes seus cavalos são magníficos. Já reparou como atiram as patas, lentamente, plás... plás... plás... plás... Cansada de pedir, Sofia calou-se, cruzou os braços e coseu-se ainda mais, se era possível, ao cantinho do carro. -Agora me lembro, pensou ela; mando parar à porta do armazém do Cristiano; digo-lhe o modo por que este homem se introduziu no coupé, os pedidos que lhe fiz e as respostas que me deu. Antes isso que fazê-lo apear misteriosamente em qualquer rua. Entretanto, Rubião estava quieto. De vez em quando, volvia no dedo o anel de brilhante,-um solitário esplêndido. Não olhava para ela, não lhe dizia nem pedia nada. Iam como um casal de aborrecidos. Sofia começava a não entender que razão o teria levado a entrar no carro. Necessidade de transporte não podia ser. Vaidade, também não; fechara as cortinas, à sua primeira queixa de publicidade. Nenhuma palavra amorosa, uma alusão remota que fosse, a medo, cheia de veneração e súplica. Era um inexplicável, um monstro.
CAPÍTULO CLIII -SOFIA... disse de repente Rubião; e continuou com pausa- Sofia, os dias passam, mas nenhum homem esquece a mulher que verdadeiramente gostou dele, ou então não merece o nome de homem. Os nossos amores não serão esquecidos nunca,-por mim, está claro, e estou certo que nem por ti. Tudo me deste, Sofia; a tua própria vida correu perigo. Verdade que eu te vingaria, minha bela. Se a vingança pode alegrar os mortos, terias o maior prazer possível. Felizmente, o meu destino protegeu-nos, e pudemos amar sem peias nem sangue... A moça olhava espantada. -Não te espantes, continuou ele; não nos vamos separar; não, não te falo de separação. Não me digas que morrerias; sei que havias de chorar muitas lágrimas. Eu não,-que não vim ao mundo para chorar,-mas nem por isso a minha dor seria menor; ao contrário, as dores guardadas no coração doem mais que as outras. Lágrimas são boas porque a pessoa desabafa. Querida amiga, falo-te assim, porque é preciso termos cautela; a nossa insaciável paixão pode esquecer esta necessidade. Temos facilitado muito, Sofia; como nascemos um para o outro, parece-nos que estamos casados, e facilitamos. Ouve, querida, ouve, alma da minha alma... A vida é bela! A vida é grande! a vida é sublime! Contigo, porém, que nome haverá que lhe possa dar? Lembras-te da nossa primeira entrevista? Rubião disse esta última palavra, querendo pegar-lhe na mão. Sofia recuou a tempo; estava desorientada, não entendia e tinha medo . A voz dele crescia, o cocheiro podia ouvir alguma cousa... uma suspeita a abaloutalvez o intento de Rubião fosse justamento fazer-se ouvir, para obrigá-la pelo terror,-ou então para que a abocanhassem. Teve ímpeto de atirarse a ele, gritar que lhe acudissem, e salvar-se pelo escândalo. Ele baixinho, depois de curta pausa -A mim lembra-me, como se fosse ontem. Tu chegaste de carro, não era este; era um carro de praça, uma caleça. Desceste medrosa, com o véu pela cara; tremias como varas verdes... Mas os meus braços te ampararam... O sol daquele dia devia ter parado, como quando obedeceu a Josué... E contudo, minha flor, aquelas horas foram compridas como diabo, não sei por que; a rigor, deviam ser curtas. Era talvez porque a nossa paixão não acabava mais, não acabou, nem há de acabar nunca... Em compensação, não vimos mais o sol; ia caindo para o outro lado das montanhas quando minha Sofia, ainda medrosa, saiu para a rua, e pegou de outra caleça. Outra ou a mesma? Creio que foi a mesma. Não imaginas como fiquei; parecia tonto, beijei tudo em que havias tocado; cheguei a beijar a soleira da porta. Creio que já te contei isto. A soleira da porta. E estive quase a ir de rastos, beijar os degraus da escada. . . Não o fiz, recolhi-me, fechei-me para que se não perdesse o teu cheiro; violeta, se bem me recordo... Não, não era possível que o intuito de Rubião fosse fazer crer ao cocheiro uma aventura mentirosa. A voz era tão sumida que Sofia mal podia escutá-la mas, se lhe custava entender as palavras, não chegava a compreender o sentido delas. A que vinha aquela história não sucedida? Quem quer que a ouvisse, aceitaria tudo por verdade, tal era a nota sincera, a meiguice dos termos e a verossimilhança dos pormenores. E ele continuou suspirando as belas reminiscências . . . -Mas que caçoada é essa? atalhou finamente Sofia. Não lhe respondeu o nosso amigo;-tinha a imagem diante dos olhos, não ouviu a pergunta, e foi andando. Citou-lhe um concerto de Gottschalk. O divino pianista melodiava ao piano; eles ouviam, mas o demônio da música levou os olhos de um para outro, e ambos esqueceram o resto. Quando a música cessou, as palmas romperam, e eles acordaram. Ai tristes! acordaram com o olhar do Palha em cima deles, um olho de onça brava. Nessa noite cuidou que ele a matasse. -Senhor Rubião... -Napoleão, não; chama-me Luís. Sou o teu Luís, não é verdade, galante criatura? Teu, teu. .. Chama-me teu; o teu Luís, o teu querido Luís. Ai, se tu soubesses o gosto que me dás quando te ouço essas duas palavras"Meu Luís!" Tu és a minha Sofia,-a doce, a mimosa Sofia da minha alma. Não percamos estes momentos; vamos dizer nomes ternos- mas, baixo, baixinho, para que os malandros da almofada do carro não escutem. Para que há de haver cocheiros neste mundo? Se o carro andasse por si, a gente falava à vontade, e iria ao fim da Terra. Já então iam costeando o Passeio Público; Sofia não deu por isso. olhava fixamente para Rubião; não podia ser cálculo de perverso, nem lhe atribuía mofa. . . Delírio, sim, é o que era; tinha a sinceridade da palavra, como pessoa que vê ou viu realmente as coisas que relata. "É preciso pô-lo fora daqui", pensou a moça. E aparelhando-se de coragem-Onde estaremos nós? perguntou-lhe. É ocasião de separar-nos. Veja do lado de lá; onde estamos? Parece que é o convento; estamos no Largo da Ajuda. Diga ao cocheiro que pare; ou, se quer, pode apear-se no Largo da Carioca. Meu marido. . . -Vou nomeá-lo embaixador, disse Rubião. Ou senador, se quiser. Senador é melhor; ficam os dous aqui. Embaixador que fosse, não consentiria que tu o acompanhasses, e as más línguas... Tu sabes a oposição que sofro, as calúnias. . . Ah! ruim gente! Convento da Ajuda, disseste? Que tens tu com ele? Queres ser freira? -Não; digo que já passamos o convento da Ajuda. Vou deixá-lo no Largo da Carioca. Ou vamos até o armazém de meu marido? Sofia tornou a apegar-se ao segundo alvitre; não se faria suspeita ao cocheiro, provaria melhor a sua inocência ao Palha, narrando-lhe tudo, desde a entrada inesperada no carro até o delírio. E que delírio era esse? Sofia pensou que o motivo podia ser ela própria, e esta conjetura fê-la sorrir de piedade. -Para quê? disse Rubião. Vou apear-me aqui mesmo, é mais seguro. Para que há de ele desconfiar de nós e maltratar-te? Posso castigá-lo, mas sempre me ficaria o remorso do mal que ele te causaria. Não, linda flor amiga; o vento que se atrevesse a tocar em tua pessoa, acredita que eu mandaria pôr fora do espaço, como um vento indigno. Tu ainda não conheces bem o meu poder, Sofia; anda, confessa. Como Sofia não confessasse nada, Rubião chamou-lhe de bonita, e ofereceu-lhe o solitário que tinha no dedo; ela, porém, conquanto amasse as jóias e tivesse a intuição dos solitários, recusou medrosamente a oferta. -Compreendo o escrúpulo, disse ele; mas não perdes por isso, porque hás de receber outra pedra ainda mais bela, e pela mão de teu marido. Far-te-ei duquesa. Ouviste? O título é dado a ele, mas é que és a causa. Duque. . . Duque de quê? Vou ver um título bonito; ou então escolhe tu mesma, porque é para ti, não é para ele, é para ti, minha mimosa. Não é preciso escolher já, vai para casa e pensa. Não te vexes; manda-me dizer o que achares mais bonito, e faço lavrar imediatamente o decreto. Também podes fazer outra cousaescolhe, e diz-me no nosso primeiro encontro, no lugar do costume. Quero ser o primeiro que te chame duquesa. Querida duquesa... O decreto virá depois. Duquesa da minha alma! -Sim, sim, disse ela desvairadamente, mas avisemos o cocheiro que nos leve até a casa de Cristiano. -Não, apeio-me aqui... Pára! pára! Rubião ergueu as cortinas, e o lacaio veio abrir a portinhola. Sofia, para tirar toda a suspeita a este, pediu novamente ao Rubião que fosse com ela à casa do marido; disse-lhe que este precisava falar-lhe com urgência. Rubião olhou um pouco espantado para ela, para o lacaio e para a rua; e respondeu que não, que iria depois.
CAPÍTULO CLIV APENAS SEPARADOS, deu-se em ambos um contraste. Rubião, na rua, voltou a cabeça para todos os lados, a realidade apossava-se dele e o delírio esvaía-se. Andava, estacava diante de uma loja, atravessava a rua, detinha um conhecido, pedia-lhe notícias e opiniões; esforço inconsciente para sacudir de si a personalidade emprestada. Ao contrário, Sofia, passado o susto e o espanto, mergulhou no devaneio; todas as referências e histórias mentirosas de Rubião como que lhe davam saudades,-saudades de quê?-"saudades do céu" que é o que dizia o Padre Bernardes do sentimento de um bom cristão. Nomes diversos relampejavam no azul daquela possibilidade Quanto pormenor interessante! Sofia reconstruiu a caleça velha, onde entrou rápida, donde desceu trêmula, para esgueirar-se pelo corredor dentro, subir a escada, e achar um homem,-que lhe disse os mimos mais apetitosos deste mundo, e os repetiu agora, ao pé dela, no carro mas não era, não podia ser o Rubião. Quem seria? Nomes diversos relampejavam no azul daquela possibilidade.
CAPÍTULO CLV ESPALHOU-SE a nova da mania de Rubião . Alguns, não o encontrando nas horas do delírio, faziam experiências, a ver se era verdadeiro o boato; encaminhavam a conversação para os negócios de França do imperador. Rubião resvalava ao abismo, e convencia-os.
CAPÍTULO CLVI PASSARAM-SE alguns meses, veio a guerra franco-prussiana, e as crises de Rubião tornaram-se mais agudas e menos espaçadas. Quando as malas da Europa chegavam cedo, Rubião saía de Botafogo, antes do almoço, e corria a esperar os jornais; comprava a Correspondência de Portugal, e ia lê-la no Carceler. Quaisquer que fossem as notícias dava-lhes o sentido da vitória. Fazia a conta dos mortos e feridos, e achava sempre um grande saldo a seu favor. A queda de Napoleão III foi para ele a captura do rei Guilherme, a revolução de 4 de setembro um banquete de bonapartistas. Em casa, os amigos do jantar não se metiam a dissuadi-lo. Também não confirmavam nada, por vergonha uns dos outros; sorriam e desconversavam. Todos, entretanto, tinham as suas patentes militares, o Marechal Torres, o Marechal Pio, o Marechal Ribeiro, e acudiam pelo título. Rubião via-os fardados; ordenava um reconhecimento, um ataque, e não era necessário que eles saíssem a obedecer; o cérebro do anfitrião cumpria tudo. Quando Rubião deixava o campo de batalha para tornar à mesa, esta era outra. Já sem prataria, quase sem porcelana nem cristais, ainda assim aparecia aos olhos de Rubião regiamente esplêndida. Pobres galinhas magras eram graduadas em faisões; picados triviais, assados de má morte traziam o sabor das mais finas iguarias da terra. Os comensais faziam algum reparo, entre si,-ou ao cozinheiro,-mas Luculo ceava sempre com Luculo. Toda a mais casa, gasta pelo tempo e pela incúria, tapetes desbotados, mobílias truncadas e descompostas, cortinas enxovalhadas, nada tinha o seu atual aspecto, mas outro, lustroso e magnífico. E a linguagem era também diversa, rotunda e copiosa, e assim os pensamentos, alguns extraordinários , como os do finado amigo Quincas Borba,-teorias que ele não entendera, quando lhas ouvira outrora, em Barbacena, e que ora repetia com lucidez, com alma,- às vezes, empregando as mesmas frases do filósofo. Como explicar essa repetição do obscuro, esse conhecimento do inextricável, quando os pensamentos e as palavras pareciam ter ido com os ventos de outros dias? E por que todas essas reminiscências desapareciam com a volta da razão?
CAPÍTULO CLVII A COMPAIXÃO DE SOFIA, - explicado o mal de Rubião pelo amor que ele lhe tinha,-era um sentimento médio, não simpatia pura nem egoísmo ferrenho, mas participando de ambos. Uma vez que evitasse alguma situação idêntica à do coupé, tudo ia bem. Nas horas em que Rubião estava lúcido, escutava-o e falava-lhe com interesse, -até porque a doença, dando-lhe audácia nos momentos de crise, dobrava-lhe a timidez nas horas normais. Não sorria, como o Palha, quando Rubião subia ao trono ou comandava um exército. Crendo-se autora do mal, perdoava-lho; a idéia de ter sido amada até à loucura, sagrava-lhe o homem.
CAPÍTULO CLVIII -POR QUE NÃO O TRATAM? perguntou uma noite D. Fernanda, que ali o conhecera no ano anterior; pode ser que se cure. -Parece que não é cousa grave, acudiu o Palha; tem desses acessos, mas assim mansos, como viu, idéias de grandeza, que passam logo; e repare que, fora daquilo, conversa perfeitamente. Contudo, pode ser... Que acha V. Ex.a? Teófilo, o marido de D. Fernanda, responde que sim, que era possível. -Que fazia ele, ou que faz agora? continuou o deputado. -Nada, nem agora nem antes. Era rico,-mas gastador. Conhecemo-lo quando veio de Minas, e fomos, por assim dizer, o seu guia no Rio de Janeiro, aonde não voltara desde longos anos. Bom homem. Sempre com luxo, lembra-se? Mas, não há riqueza inesgotável, quando se entra pelo capital; foi o que ele fez. Hoje creio que tenha pouco... -Podia salvar-lhe esse pouco, fazendo-se nomear curador, enquanto ele se trata. Não sou médico, mas pode ser que esse amigo fique bom. -Não digo que não. Realmente, é pena. . . Dá-se com todos e presta seus serviços. Sabe que esteve para ser nosso parente? Pois não? Quis casar com Maria Benedita. -A propósito de Maria Benedita, interrompeu D. Fernanda, ia me esquecendo que trago uma carta dela para mostrar à senhora; recebi-a ontem. Já há de saber que, em breve, estão de volta? Está aqui. Entregou a carta a Sofia, que a abriu sem entusiasmo, e a leu com tédio. Era mais que uma vulgar carta transatlântica, era um depósito moral, uma confissão íntima e completa de pessoa feliz e agradecida. Contava os mais recentes episódios da viagem, desordenadamente, porque os viajantes eram sobrepostos a tudo, e as mais belas obras do homem ou da natureza valiam menos que os olhos que as miravam. Às vezes, um incidente de hospedaria ou de rua comia mais papel e trazia mais interesse que outros, pela razão de pôr em relevo as qualidades do marido. Maria Benedita amava tanto ou ainda mais que no primeiro dia. No fim, a medo em post scriptum, pedindo que o não dissesse a ninguém, confessava que era mãe. Sofia dobrou o papel, não já com tédio, senão com despeito, e por dous motivos que se contradizem; mas a contradição deste mundo. Cotejada aquela carta com as que recebera de Maria Benedita, dir-se-ia que ela era apenas uma conhecida, sem outro laço de sangue ou de afeto; e, contudo, não quereria ser confidente daquela felicidade cochichada do outro lado do oceano, cheia de minúcias, de adjetivos, de exclamações, do nome de Carlos Maria, dos olhos de Carlos Maria, dos ditos de Carlos Maria, finalmente do filho de Carlos Maria. Parecia acinte, e quase fazia crer na cumplicidade de D. Fernanda. Hábil, sabendo domar-se a tempo, Sofia dissimulou o despeito, e restituiu sorrindo a carta da prima. Quis dizer que, pelo texto, a felicidade de Maria Benedita devia estar intacta como a levara daqui, mas a voz não lhe passou da garganta. D. Fernanda é que se incumbiu da conclusão -Vê-se bem que é feliz? -Parece que sim. CAPÍTULO CLIX SE A MANHÃ SEGUINTE não fosse chuvosa, outra seria a disposição de Sofia. O sol nem sempre é oficial de boas idéias; mas, ao menos, permite sair, e a troca do espetáculo muda as sensações. Quando Sofia acordou, já a chuva caía grossa e contínua, e o céu e o mar era tudo um, tão baixas estavam as nuvens, tão espessa era a cerração. Tédio por dentro e por fora. Nada em que espraiasse a vista e descansasse a alma. Sofia meteu a alma em um caixão de cedro, encerrou o de cedro no caixão de chumbo do dia. E deixou-se estar sinceramente defunta. Não sabia que os defuntos pensam, que um enxame de noções novas vem substituir as velhas, e que eles saem criticando o mundo como os espectadores saem do teatro criticando a peça e os atores. A defunta sentiu que algumas noções e sensações continuavam a vida. Vinham de mistura, mas tinham um ponto de partida comum,-a carta da véspera e as recordações que lhe trouxe de Carlos Maria. Em verdade, cuidara ter arredado para longe essa figura aborrecida, e ei-la que reaparecia, que sorria, que a fitava, que lhe sussurrava ao ouvido as mesmas palavras do vadio egoísta e enfatuado, que a convidou um dia à valsa do adultério e a deixou sozinha no meio do salão. A volta dessa vinham outras; Maria Benedita, por exemplo, um caco de gente, que ela foi buscar à roça para lhe dar lustre de cidade, e que esqueceu todos os benefícios para só se lembrar das suas ambições. E D. Fernanda também, madrinha dos seus amores, que de caso pensado, trouxera na véspera a carta de Maria Benedita com o post scriptum confidencial. Não advertiu que o prazer da amiga bastava a explicar o esquecimento da parte reservada da carta; menos ainda indagou se a natureza moral de D. Fernanda comportava essa suposição. Vieram assim outras cogitações e imagens, e tornaram as primeiras, e todas se iam ligando e desligando. Entre elas, apareceu uma lembrança da véspera. O marido de D. Fernanda envolvera Sofia em um grande olhar de admiração. Ela, em verdade, estava nos seus melhores dias; o vestido sublinhava admiravelmente a gentileza do busto, o estreito da cintura e o relevo delicado das cadeiras;-era foulard, cor de palha. -Cor de palha, acentuou Sofia rindo, quando D. Fernanda o elogiou, pouco depois de entrar; cor de palha, como uma lembrança deste senhor. Não é fácil dissimular o prazer da lisonja; o marido sorriu cheio de vaidade, procurando ler nos olhos dos outros o efeito daquela prova minuciosa de amor. Teófilo elogiou também o vestido, mas era difícil mirá-lo sem mirar também o corpo da dona; dali, os olhos compridos que lhe deitou, sem concupiscência, é certo, e quase sem reincidência. Pois essa lembrança da véspera, um gesto sem convite, uma admiração sem desejo, veio meter-se de permeio agora, quando Sofia cuidava na maldade da outra. Carlos Maria Teófilo... Outros nomes relampejavam no céu daquela possibilidade, como ficou expresso no cap. CLIV. E vieram todos agora, porque a chuva continuando a cair o céu e o mar estavam ainda unidos pela mesma cerração. Vieram todos esses nomes, com os próprios sujeitos correspondentes, e até vieram sujeitos sem nomes,-os adventícios e ignorados,- que uma só vez passaram por ela, cantaram o hino da admiração e receberam o óbolo da boa vontade. Por que não reteve algum de tantos, para ouvi-lo cantar e enriquecê-lo? Não é que os óbulos enriqueçam a ninguém, mas há outras moedas de maior valia. Por que não reteve um de tantos nomes elegantes, e até egrégios? Essa pergunta sem palavras correu-lhe assim pelas veias, pelos nervos, pelo cérebro, sem outra resposta mais que a agitação e a curiosidade.
CAPÍTULO CLX NISTO, A CHUVA CESSOU um pouco, e um raio de sol logrou rompeu o nevoeiro,-um desses raios úmidos que parecem vir de olhos que choraram. Sofia cuidou que ainda podia sair; estava inquieta por ver, por andar, por sacudir aquele torpor, e esperou que o sol varres se a chuva e tomasse conta do céu e da terra; mas o grande astro percebeu que a intenção dela era constituí-lo lanterna de Diógenes e disse ao raio úmido"Volta, volta ao meu seio, raio casto e virtuoso; não vás tu conduzi-la onde o seu desejo a quer levar. Que ame, se lhe parece; que responda aos bilhetes namorados,-se os recebe e não queima,-não lhe sirvas tu de archote, luz do meu seio, filho das minhas entranhas, raio, irmão dos meus raios. " E o raio obedeceu, recolhendo-se ao foco central, um pouco espantado do temor do sol, que tem visto tantas cousas ordinárias e extraordinárias. Então o véu de nuvens fez-se outra vez espesso, e mais escuro, e a chuva tornou a cair em grandes bátegas.
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