QUINCAS BORBA - CAPÍTULO 61 AO 80
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CAPÍTULO LXI -QUE É QUE TEM aí na mão? inquiriu Camacho, logo que Rubião entrou no escritório. Rubião narrou o incidente da Rua da Ajuda. O advogado fez-lhe muitas perguntas sobre a criança, os pais, o número da casa; mas, o próprio Rubião pôs termo às respostas. -Não sabe, ao menos, o nome do pequeno? -Ouvi chamar Deolindo. Vamos ao que importa. Venho assinar a sua folha; recebi um número, e quero contribuir para... Camacho acudiu que não precisava de assinaturas. Em assinaturas a folha ia bem. O que ela precisava era de material tipográfico e desenvolvimento no texto; ampliar a matéria, pôr-lhe mais noticiário variedades, tradução de algum romance para o folhetim, movimento do porto, da praça, etc. Tinha anúncios, como viu. -Sim, senhor. -Estou com o capital quase subscrito. Bastam dez pessoas, e lá somos oito; eu e mais sete. Faltam dous. Com mais duas pessoas está completo o capital. -Quanto será? pensou Rubião. Camacho batia com um canivete na beira da escrivaninha, calado olhando às furtadelas para o outro. Rubião passou uma vista à sala, poucos móveis, alguns autos sobre um tamborete ao pé do advogado, estante com livros, Lobão, Pereira e Sousa, Dalloz, Ordenações do Reino, um retrato na parede, diante da escrivaninha. -Conhece? disse Camacho apontando para o retrato. -Não, senhor. -Veja se conhece. -Não posso saber. Nunes Machado? -Não, acudiu o ex-deputado dando à cara um ar pesaroso. Não pude obter um bom retrato dele. Vendem-se aí umas litografias que me não parecem boas. Não, aquele é o marquês. -De Barbacena? -Não, de Paraná; é o grande marquês, meu particular amigo. Tentou conciliar os partidos, e foi por isso que me achei com ele. Morreu cedo; a obra não pôde ir adiante. Hoje, se ele a quisesse, ter-me-ia contra si. Não! nada de conciliações; guerra de morte. Havemos de destruí-los; leia a Atalaia, meu bom companheiro de lutas; recebe-la-á em casa... -Não, senhor. -Por que não? Rubião baixou os olhos diante do nariz interrogativo do Camacho. -Não, senhor; sou firme, desejo ajudar os amigos. Receber a folha de graça.. . -Mas, se já lhe disse que de assinaturas vamos bem, retorquiu Camacho. -Sim, senhor, mas não disse também que faltam duas pessoas para o capital? -Duas, sim; temos oito. -Quanto é o capital? -O capital é de cinqüenta contos; cinco por pessoa. -Pois entro com cinco. Camacho agradeceu-lho em nome das idéias. Tinha intenção de convidá-lo para entrar com eles; era um direito adquirido pela convicção, pela fidelidade, pelo amor aos negócios públicos do seu recente amigo. Uma vez que espontaneamente se alistou, pedia-lhe que o desculpasse. Mostrou-lhe a lista dos outros; Camacho era o primeiro, entrava com a folha, o material existente, as assinaturas, e o trabalho hercúleo... Ia a emendar-se, mas repetiu corajosamentetrabalho hercúleo. Podia dizer que o era, sem deslustre, nem mentira; esganou cobras, em criança. Já agora era um vício; gostava da luta, morreria nela, envolvido na bandeira...
CAPÍTULO LXII RUBIÃO despediu-se. No corredor passou por ele uma senhora alta, vestida de preto, com um arruído de seda e vidrilhos. Indo a descer a escada, ouviu a voz do Camacho, mais alta do que até então-Oh! senhora baronesa! No primeiro degrau parou. A voz argentina da senhora começou a dizer as primeiras palavras; era uma demanda. Baronesa! E o nosso Rubião ia descendo a custo, de manso, para não parecer que ficara ouvindo. O ar metia-lhe pelo nariz acima um aroma fino e raro, cousa de tontear, o aroma deixado por ela. Baronesa! Chegou à porta da rua; viu parado um coupé; o lacaio, em pé, na calçada, o cocheiro na almofada, olhando; fardados ambos... Que novidade podia haver em tudo isso? Nenhuma. Uma senhora titular cheirosa e rica, talvez demandista para matar o tédio. Mas o caso particular é que ele, Rubião, sem saber por que, e apesar do seu próprio luxo, sentia-se o mesmo antigo professor de Barbacena.
CAPÍTULO LXIII NA RUA, encontrou Sofia com uma senhora idosa e outra moça. Não teve olhos para ver bem as feições destas; todo ele foi pouco para Sofia. Falaram-se acanhadamente, dous minutos apenas, e seguiram o seu caminho. Rubião parou adiante, e olhou para trás; mas as três senhoras iam andando sem voltar a cabeça. Depois do jantar, consigo "Irei lá hoje?" Reflexionou muito sem adiantar nada. Ora que sim, ora que não. Achara-lhe um modo esquisito; mas lembrava-se que sorriu,- pouco, mas sorriu. Pôs o caso à sorte. Se o primeiro carro que passasse viesse da direita, iria; se viesse da esquerda, não. E deixou-se estar na sala, no pouf central, olhando. Veio logo um tílburi da esquerda. Estava dito; não ia a Santa Teresa. Mas aqui a consciência reagiu; queria os próprios termos da propostaum carro. Tílburi não era carro. Devia ser o que vulgarmente se chama carro, uma caleça inteira ou meia, ou ainda uma vitória. Daí a pouco vieram chegando da direita muitas caleças, que voltavam de um enterro. Foi.
CAPÍTULO LXIV SOFIA DEU-LHE A MÃO gentilmente, sem sombra de rancor. As duas senhoras do passeio estavam com ela, em trajes caseiros, apresentou-as. A moça era prima, a velha era tia,-aquela tia da roça, autora da carta que Sofia recebeu no jardim das mãos do carteiro que logo depois deu uma queda. A tia chamava-se D. Maria Augusta; tinha uma fazendola, alguns escravos e dívidas, que lhe deixara o marido, além das saudades. A filha era Maria Benedita,-nome que a vexava, por ser de velha, dizia ela; mas a mãe retorquia-lhe que as velhas foram algum dia moças e meninas, e que os nomes adequados às pessoas eram imaginações de poetas e contadores de histórias. Maria Benedita era o nome da avó dela, afilhada de Luís de Vasconcelos, o vice-rei. Que queria mais? Contaram isto ao Rubião, sem que ela se vexasse. Sofia, ou por atenuar o caso, ou por outro motivo, acrescentou que os mais feios nomes eram lindos, segundo a pessoa. Maria Benedita era lindíssimo -Não lhe parece? concluiu voltando-se para Rubião. -Deixa de caçoada, prima! acudiu Maria Benedita, rindo. Podemos crer que a velha nem Rubião entenderam o dito,- a velha, porque começava a cochilar, - Rubião porque afagava um cãozinho que tinham dado a Sofia, pequeno, delgado, leve, buliçoso olhos negros, com um guizo ao pescoço. Mas, insistindo a dona da casa, ele respondeu que sim, sem saber o que era. Maria Benedita deu um muxoxo. Em verdade, não era uma beleza; não lhe pedissem olhos que fascinam, nem dessas bocas que segredam alguma cousa, ainda caladas; era natural, sem acanho de roceira; e tinha um donaire particular, que corrigia as incoerências do vestido. Nascera na roça e gostava da roça. A roça era perto, Iguaçu. De longe em longe vinha à cidade, passar alguns dias; mas, ao cabo dos dous primeiros, já estava ansiosa por tornar a casa. A educação foi sumárialer, escrever, doutrina e algumas obras de agulha. Nos últimos tempos (ia em dezenove anos), Sofia apertou com ela para aprender piano; a tia consentiu; Maria Benedita veio para a casa da prima, e ali esteve uns dezoito dias. Não pôde mais; doeram-lhe as saudades da mãe e voltou para a roça, deixando consternado o professor, que anunciou nela, desde os primeiros dias, um grande talento musical. -Oh! sem dúvida, um grande talento! Maria Benedita riu-se quando a prima lhe contou isto, e nunca mais pôde ver a sério o homem. Às vezes, no meio de uma lição, deitava a rirSofia contraía as sobrancelhas, a modo de ralho, e o pobre homem perguntava o que era, e de si mesmo explicava que havia de ser alguma lembrança de moça, e continuava a lição. Nem piano nem francês,-outra lacuna, que Sofia mal podia desculpar. D. Maria Augusta não compreendia a consternação da sobrinha. Para que francês! A sobrinha dizia-lhe que era indispensável para conversar, para ir às lojas, para ler um romance. . . -Sempre fui feliz sem francês, respondia a velha; e os meia-línguas da roça são a mesma cousa; não vivem pior que os crioulos. Um dia acrescentou -Nem por isso lhe hão de faltar noivos. Pode casar, já lhe disse que pode casar quando quiser, que eu também casei; e at deixar-me na roça, sozinha, morrer como uma besta velha... -Mamãe! -Não tenha pena, é só aparecer o noivo. Em aparecendo vá com ele, e deixe-me ficar. Olha Maria José o que fez comigo? Vive lá pelo Ceará. -Mas se o marido é juiz de direito, ponderava Sofia. -Torto que seja! Para mim é a mesma cousa. Cá fica o frangalho da velha. Casa, Maria Benedita, casa depressa; eu morrerei com Deus. Não terei filhos, mas terei Nossa Senhora, que é mãe de todos. Casa, anda, casa! Toda essa rabugem era cálculo; tinha em mira arredar a filha do matrimônio, excitando-lhe o terror e a piedade. Quando menos, retardar-lho. Não creio que revelasse esse pecado ao professor, nem que chegasse a entendê-loera obra de um egoísmo idoso e melindroso. D. Maria Augusta fora longamente querida; a. mãe era douda por ela, o marido amou-a até o último dia com a mesma intensidade. Mortos ambos, todas as suas saudades filiais e matrimoniais foram postas na cabeça das duas filhas. Uma fugira-lhe, casando. Ameaçada da solidão, se a outra casasse também, D. Maria Augusta fazia tudo o que podia por evitar o desastre.
CAPÍTULO LXV CURTA FOI A VISITA de Rubião. Às nove horas levantou-se ele discretamente, esperando qualquer palavra de Sofia, um pedido para que ficasse ainda algum tempo, que esperasse o marido que já vinha um espanto que fosseJá! mas nem isso. Sofia estendeu-lhe a mão, em que ele mal pôde tocar. Contudo, a moça, durante a visita, mostrou-se tão natural, tão sem azedume... Não teve seguramente os olhos longos e loquazes, como dantes; parecia até que não houvera nada nem bem nem mal, nem morangos, nem lua. Rubião tremia, não achava palavras, ela achava todas as que queria, e se era preciso olhar para ele, fazia-o direitamente, tranqüilamente. -Lembranças ao nosso Palha, murmurou ele de chapéu e bengala na mão. -Obrigada! Foi fazer uma visita; parece que ouço passos; há de ser ele. Não era ele, era Carlos Maria. Rubião ficou espantado de o ver ali, mas achou logo que a presença da fazendeira e da filha explicaria tudo; podia ser até que fossem aparentados. -Ia saindo, quando o senhor entrou, disse-lhe Rubião depois de o ver sentado ao pé de D. Maria Augusta. -Ah! respondeu o outro, olhando para o retrato de Sofia. Sofia foi até à porta despedir-se do Rubião; disse-lhe que o marido ficaria com pena de não estar em casa; mas que a visita era imperiosa. Negócios... Iria pedir-lhe desculpa. -Que desculpa? acudiu Rubião. Parece que quis dizer ainda alguma cousa; mas o aperto de mão de Sofia e a reverência que esta lhe fez deram-lhe o sinal de despedida. Rubião inclinou-se, atravessou o jardim, ouvindo a voz de Carlos Maria, na sala -Vou denunciar seu marido, minha senhora; é homem de muito mau gosto. Rubião parou. -Por quê? disse Sofia. -Tem este seu retrato na sala, continuou Carlos Maria; a senhora é muito mais bela, infinitamente mais bela que a pintura. Comparem, minhas senhoras.
CAPÍTULO LXVI "COMO ELE DIZ aquelas cousas tão naturalmente! pensou Rubião, em casa, relembrando as palavras de Carlos Maria. Desfazer no retrato só para elogiar a pessoa! Note-se que o retrato é muito parecido."
CAPÍTULO LXVII DE MANHÃ, na cama, teve um sobressalto. O primeiro jornal que abriu foi a Atalaia. Leu o artigo editorial, uma correspondência e algumas notícias. De repente, deu com o seu nome. -Que é isto? Era o seu próprio nome impresso, rutilante, multiplicado, nada menos que uma notícia do caso da Rua da Ajuda. Depois do sobressalto, aborrecimento. Que diacho de idéia aquela de imprimir um fato particular, contado em confiança? Não quis ler nada; desde que percebeu o que era deitou a folha ao chão, e pegou em outra. Infelizmente, perdera a serenidade, lia por alto, pulava algumas linhas, não entendia outras, ou dava por si no fim de uma coluna sem saber como viera escorregando até ali. Ao levantar-se, sentou-se na poltrona, ao pé da cama, e pegou da Atalaia. Lançou os olhos pela notíciaera mais de uma coluna. Coluna e tanto para cousa tão diminuta! pensou consigo. E a fim de ver como é que Camacho enchera o papel, leu tudo, um pouso às pressas, vexado dos adjetivos e da descrição dramática do caso. -Foi bem feito! disse em voz alta. Quem me mandou ser linguarudo? Passou ao banho, vestiu-se, penteou-se, sem esquecer a bisbilhotice da folha, acanhado com a publicação de um negócio, que ele reputava mínimo, e ainda mais pelo encarecimento que lhe dera o escritor, como se tratasse de dizer bem ou mal em política. Ao café, pegou novamente na folha, para ler outras cousas, nomeações do governo, um assassinato em Garanhuns, meteorologia, até que a vista desastrada foi cair na notícia, e leu-a então com pausa. Aqui confessou Rubião que bem podia crer na sinceridade do escritor. O entusiasmo da linguagem explicava-se pela impressão que lhe ficou do fato; tal foi ela que lhe não permitiu ser mais sóbrio. Naturalmente é o que foi. Rubião recordou a sua entrada no escritório do Camacho, o modo por que falou; e daí tornou atrás, ao próprio ato. Estirado no gabinete, evocou a cenao menino, o carro, os cavalos, o grito, o salto que deu, levado de um ímpeto irresistível. - Agora mesmo não podia explicar o negócio; foi como se lhe tivesse passado uma sombra pelos olhos. . . Atirou-se à criança, e aos cavalos, cego e surdo, sem atender ao próprio risco... E podia ficar ali, embaixo dos animais, esmagado pelas rodas, morto ou ferido; ferido que fosse. . . Podia ou não podia? Era impossível negar que a situação foi grave... A prova é que os pais e a vizinhança. . . Rubião interrompeu as reflexões para ler ainda a notícia. Que era bem escrita, era. Trechos havia que releu com muita satisfação. O diabo do homem parecia ter assistido à cena. Que narração! que viveza de estilo! Alguns pontos estavam acrescentados,-confusão de memória,-mas o acréscimo não ficava mal. E certo orgulho que lhe notou ao repetir-lhe o nome? "O nosso amigo, o nosso distintíssimo amigo, o nosso valente amigo..." Ao almoço, riu-se de si mesmo; achou-se mortificado em demasia. Afinal, que tinha que o outro desse aos seus leitores uma notícia que era verdadeira, que era interessante, dramática,-e seguramente,- não vulgar? Saindo, recebeu alguns cumprimentos; Freitas chamou-lhe S. Vicente de Paula. E o nosso amigo sorria, agradecia, diminuía-se, não era nada -Nada? replicou alguém. Dê-me muitos desses nadas. Salvar uma criança com risco da própria vida... Rubião ia concordando, ouvindo, sorrindo; contava a cena a alguns curiosos, que a queriam da própria boca do autor. Certos ouvintes respondiam com proezas suas,- um que salvara uma lei um homem, outro uma menina, prestes a afogar-se no Boqueirão do Passeio, estando a tomar banho. Vinham também suicídios malogrados, por intervenção do ouvinte, que tomou a pistola ao infeliz. e fê-lo jurar. . . Cada gloriazinha oculta picava o ovo, e punha a cabeça de fora, olho aberto, sem penas, em volta da glória máxima do Rubião. Também teve invejosos, alguns que nem o conheciam, só por ouvi-lo louvar em voz alta. Rubião foi agradecer a notícia ao Camacho, não sem alguma censura pelo abuso de confiança, mas uma censura mole, ao canto da boca. Dali foi comprar uns tantos exemplares da folha para os amigos de Barbacena. Nenhuma outra transcreveu a notícia; ele, a conselho do Freitas, fê-la reimprimir nos a-pedidos do Jornal do Comércio, interlinhada.
CAPÍTULO LXVIII MARIA BENEDITA consentiu finalmente em aprender francês e piano. Durante quatro dias a prima teimou com ela, a todas as horas, de tal arte e maneira, que a mãe da moça resolveu apressar a volta à fazenda, para evitar que ela acabasse aceitando. A filha resistiu muito; respondia que eram cousas supérfluas, que moça de roça não precisa de prendas da cidade. Uma noite, porém, estando ali Carlos Maria, pediu-lhe este que tocasse alguma cousa, Maria Benedita fez-se vermelha. Sofia acudiu com uma mentira -Não lhe peça isso; ainda não tocou depois que veio. Diz que agora só toca para os roceiros. -Pois faça de conta que somos roceiros, insistiu o moço. Mas passou logo a outra cousa, ao baile da baronesa do Piauí (a mesma que o nosso amigo Rubião encontrou no escritório do Camacho), um baile esplêndido, oh! esplêndido! A baronesa prezava-o muito, disse ele. No dia seguinte, Maria Benedita declarou à prima que estava pronta a aprender piano e francês, rabeca e até russo, se quisesse. A dificuldade era vencer a mãe. Esta, quando soube da resolução da filha, pôs as mãos na cabeça. Que francês? que piano? Bradou que não, ou então que deixasse de ser sua filha; podia ficar, tocar, cantar, falar cabinda ou a língua do diabo que os levasse a todos. Palha é que a persuadiu finalmente; disse-lhe que, por mais supérfluas que lhe parecessem aquelas prendas, eram o mínimo dos adornos de uma educação de sala. - Mas eu criei minha filha na roça e para a roça, interrompeu a tia. -Para a roça? Quem sabe lá para que cria os filhos? Meu pai destinava-me a padre; é por isso que arranho algum latim. A senhora não há de viver sempre; os seus negócios andam atrapalhados. Pode acontecer, que Maria Benedita fique ao desamparo... Ao desamparo, não digo; enquanto vivermos somos todos uma só pessoa. Mas não é melhor prevenir? Podia ser até que, se lhe faltássemos todos. ela vivesse à larga, só com ensinar francês e piano. Basta que os saiba para estar em condições melhores. É bonita, como a senhora foi no seu tempo; e possui raras qualidades morais. Pode achar marido rico. Sabe a senhora se já tenho alguém em vista, pessoa séria? -Sim? Então ela vai aprender francês, piano e namoro? -Que namoro? Refiro-me a um pensamento íntimo, a um plano que me parece adequado à felicidade dela e de sua mãe. . . Pois eu havia... Ora, tia Augusta! Palha mostrou-se tão mortificado, que a tia deixou o tom áspero pelo tom seco. Resistiu ainda; mas a noite deu-lhe bons conselhos. O estado dos seus negócios, e a possibilidade de um genro abastado fizeram mais que outras razões. Os melhores genros da roça aliavam-se a outras fazendas, a famílias de representação e riqueza segura. Dous dias depois acharam um modus vivendi. Maria Benedita ficaria com a prima; iriam de quando em quando à roça, e a tia também viria à capital, para vê-las. Palha chegou a dizer que, logo que o estado da praça o permitisse, arranjaria meio de liquidar-lhe os negócios e transportá-la para aqui. Mas a isto a boa senhora abanou a cabeça. Não se pense que tudo isso foi tão fácil como aí fica escrito. Na prática, vieram os óbices, amofinações, saudades, rebeliões de Maria Benedita. Dezoito dias depois da volta da mãe à fazenda, quis ir visitá-la, e a prima acompanhou-a; estiveram lá uma semana. A mãe, dous meses depois, veio passar uns dias aqui. Sofia acostumava habilmente a prima às distrações da cidade, teatros, visitas, passeios, reuniões em casa, vestidos novos, chapéus lindos, jóias. Maria Benedita era mulher, posto que mulher esquisita, gostou de tais cousas, mas tinha para si que, logo que quisesse, podia arrebentar todos esses liames, e andar para a roça. A roça vinha ter com ela, às vezes, em sonho ou simples devaneio. Depois dos primeiros saraus, quando voltava para casa, não eram as sensações da noite que lhe enchiam a alma, eram as saudades de Iguaçu. Cresciam-lhe mais a certas horas do dia, quando a quietação da casa e da rua era completa. Então batia as asas para a varanda da velha casa, onde bebia café, ao pé da mãe; pensava na escravaria, nos móveis antigos, nas botinas chinelas que lhe mandara o padrinho, um fazendeiro rico de S. João d'EI-Rei,- e que lá ficaram em casa. Sofia não consentiu que ela as trouxesse. Os mestres de francês e piano eram homens sabedores do ofício. Sofia teve modo de dizer-lhes em particular que a prima vexava-se de aprender tão tarde, e pediu-lhes que não falassem nunca de tal discípula. Prometeram que sim; o de piano apenas referiu o pedido a alguns colegas d'arte, que lhe acharam graça, e contaram outras anedotas da clientela. O certo é que Maria Benedita aprendia com singular facilidade, estudava com afinco, quase todas as horas, a tal ponto que a mesma prima julgava acertado interrompê-la. -Descansa, filha de Deus! -Deixa recobrar o tempo perdido, respondia ela rindo. Então Sofia inventava passeios, à toa, para fazê-la descansar. Ora um bairro, ora outro. Em certas ruas, Maria Benedita não perdia tempolia as tabuletas francesas, e perguntava pelos substantivos novos que a prima, algumas vezes, não sabia dizer o que eram, tão estritamente adequado era o seu vocabulário às cousas do vestido, da sala e do galanteio. Mas não era só nessas disciplinas que Maria Benedita fazia progressos rápidos. A pessoa ajustara-se ao meio, mais depressa do que fariam crer o gosto natural e a vida da roça. Já competia com a outra, embora houvesse nesta um desgarre, e não sei que expressão particular que, para assim dizer, dava cor a todas as linhas e gestos da figura. Não obstante essa diferença, certo que a outra era vista e notada ao pé dela, de tal jeito que Sofia, que começara por louvá-la em toda a parte, não a deslouvava agora, mas ouvia calada as admirações. Falava bem;-mas, quando calava, era por muito tempo; dizia que eram os seus "calundus". Contradançava sem vida, que é a perfeição desse gênero de recreio; gostava muito de ver polcar e valsar. Sofia, imaginando que era por medo que a prima não valsava nem polcava, quis dar-lhe algumas lições em casa, sozinhas, com o marido ao piano; mas a prima recusava sempre. -Isso é ainda um bocadinho de casca da roça, disse-lhe uma vez Sofia. Maria Benedita sorriu de um modo tão particular, que a outra não insistiu. Não foi riso de vexame, nem de despeito, nem de desdém. Desdém, por quê? Contudo, é certo que o riso parecia vir de cima. Não menos o é que Sofia polcava e valsava com ardor, e ninguém se pendurava melhor do ombro do parceiro; Carlos Maria, que era raro dançar, só valsava com Sofia,- dous ou três giros, dizia ele;- Maria Benedita contou uma noite quinze minutos.
CAPÍTULO LXIX OS QUINZE MINUTOS foram contados no relógio do Rubião, que estava ao pé da Maria Benedita, e a quem ela perguntou duas vezes que horas eram, no princípio e no fim da valsa. A própria moça inclinou-se para ver bem o ponteiro dos minutos. -Está com sono? perguntou Rubião. Maria Benedita olhou para ele de soslaio. Viu-lhe o rosto plácido sem intenção nem riso. -Não, respondeu; digo-lhe até que estou com medo que prima Sofia se lembre de ir cedo para casa. -Não vai cedo. Já acabou a desculpa de Santa Teresa, por causa da subida. A casa fica perto daqui. De fato, as duas moravam agora na Praia do Flamengo, e o baile era na Rua dos Arcos. É de saber que tinham decorrido oito meses desde o princípio do capítulo anterior, e muita cousa estava mudada. Rubião sócio do marido de Sofia, em uma casa de importação, à Rua da Alfândega, sob a firma Palha e Compª. Era o negócio que este ia propor-lhe, naquela noite, em que achou o Dr. Camacho na casa de Botafogo Apesar de fácil, Rubião recuou algum tempo. Pediam-lhe uns bons pares de contos de réis, não entendia de comércio, não lhe tinha inclinação. Demais, os gastos particulares eram já grandes; o capital precisava do regímen do bom juro e alguma poupança, a ver se recobrava as cores e as carnes primitivas. O regímen que lhe indicavam não era claro; Rubião não podia compreender os algarismos do Palha, cálculos de lucros, tabelas de preço, direitos da alfândega, nada; mas, a linguagem falada supria a escrita. Palha dizia cousas extraordinárias, aconselhava ao amigo que aproveitasse a ocasião para por o dinheiro a caminho, multiplicá-lo. Se tinha medo, era diferente; ele, Palha, faria o negócio com John Roberts, sócio que lei da Casa Wilkinson, fundada em 1844, cujo chefe voltou para a Inglaterra, e era agora membro do Parlamento. Rubião não cedeu logo; pediu prazo, cinco dias. Consigo era mais livre mas desta vez a liberdade só servia para atordoá-lo. Computou os dinheiros despendidos, avaliou os rombos feitos no cabedal, que lhe deixara o filósofo. Quincas Borba, que estava com ele no gabinete, deitado, levantou casualmente a cabeça e fitou-o. Rubião estremeceu; a suposição de que naquele Quincas Borba podia estar a alma do outro nunca se lhe varreu inteiramente do cérebro. Desta vez chegou a verlhe um tom de censura nos olhos; riu-se, era tolice; cachorro não podia ser homem. Insensivelmente, porém, abaixou a mão e coçou as orelhas ao animal, para captá-lo. Atrás dos motivos de recusa vieram outros contrários. E se o negócio rendesse? Se realmente lhe multiplicasse o que tinha? Acrescia que a posição era respeitável, e podia trazer-lhe vantagens na eleição, quando houvesse de propor-se ao Parlamento, como o velho chefe da Casa Wilkinson. Outra razão mais forte ainda era o receio de magoar o Palha, de parecer que lhe não confiava dinheiros, quando era certo que, dias antes, recebera parte da dívida antiga, e a outra parte restante devia ser-lhe restituída dentro de dous meses. Nenhum desses motivos era pretexto de outro; vinham de si mesmos. Sofia só apareceu no fim, sem deixar de estar nele, desde o princípio, idéia latente, inconsciente, uma das cousas últimas do ato, e a única dissimulada. Rubião abanou a cabeça para expedi-la, e levantou-se. Sofia (dona astuta!) recolheu-se à inconsciência do homem, respeitosa da liberdade moral, e deixou-o resolver por si mesmo que entraria de sócio com o marido, mediante certas cláusulas de segurança. Foi assim que se fez a sociedade comercial; assim é que Rubião legalizou a assiduidade das suas visitas. -Senhor Rubião, disse Maria Benedita depois de alguns segundos de silêncio, não lhe parece que minha prima é bem bonita? -Não desfazendo na senhora, acho. -Bonita e bem feita Rubião aceitou o complemento. Um e outro acompanharam com os olhos o par de valsistas, que passeava ao longo do salão. Sofia estava magnífica. Trajava de azul escuro, mui decotada, -pelas razões ditas no capítulo XXXV; os braços nus, cheios, com uns tons de ouro claro, ajustavam-se às espáduas e aos seios, tão acostumados ao gás do salão. Diadema de pérolas feitiças, tão bem acabadas, que iam de par com as duas pérolas naturais, que lhe ornavam as orelhas, e que Rubião lhe dera um dia. Ao lado dela, Carlos Maria não ficava mal. Era um rapaz galhardo, como sabemos, e trazia os mesmos olhos plácidos do almoço do Rubião. Não tinha as maneiras súbditas, nem as curvas reverentes dos outros rapazes; exprimia-se com a graça de um rei benévolo Entretanto, se, à primeira vista, parecia fazer apenas um obséquio àquela senhora, não é menos certo que ia desvanecido, por trazer ao lado a mais esbelta mulher da noite. Os dous sentimentos não se contradiziam; fundiam-se ambos na adoração que este moço tinha de si mesmo. Assim, o contacto de Sofia era para ele como a prosternação de uma devota. Não se admirava de nada. Se um dia acordasse imperador, só se admiraria da demora do ministério em vir cumprimentá-lo. -Vou descansar um pouco, disse Sofia. -Está cansada ou... aborrecida? perguntou-lhe o braceiro -Oh! cansada apenas! Carlos Maria, arrependido de haver suposto a outra hipótese, deu se pressa em eliminá-la. -Sim, creio; por que é que estaria aborrecida? Mas eu afirmo que é capaz de fazer-me o sacrifício de passear ainda algum tempo. Cinco minutos? -Cinco minutos. -Nem mais um que seja? Pela minha parte passearia a eternidade. Sofia abaixou a cabeça. -Com a senhora, note bem. Sofia deixou-se ir com os olhos no chão, sem contestar, sem concordar, sem agradecer, ao menos. Podia não ser mais que uma galanteria, e as galanterias é de uso que se agradeçam. Já lhe tinha ouvido outrora palavras análogas, dandolhe a primazia entre as mulheres deste mundo. Deixou de as ouvir durante seis meses,-quatro que ele gastou em Petrópolis, dous em que lhe não apareceu. Ultimamente é que tornou a freqüentar a casa, a dizer-lhe finezas daquelas ora em particular, ora à vista de toda a gente. Deixou-se ir; e ambos foram andando calados, calados, calados,-até que ele rompeu o silêncio, notando-lhe que o mar defronte da casa dela batia com muita força, na noite anterior. -Passou lá? perguntou Sofia. -Estive lá; ia pelo Catete, já tarde, e lembrou-me descer à Praia do Flamengo. A noite era clara; fiquei cerca de uma hora, entre o mar e a sua casa. A senhora aposto que nem sonhava comigo? Entretanto, eu quase que ouvia a sua respiração. Sofia tentou sorrir; ele continuou -O mar batia com força, é verdade, mas o meu coração não batia menos rijamente--com esta diferença que o mar estúpido, bate sem saber por que, e o meu coração sabe que batia pela senhora -Oh! murmurou Sofia. Com espanto? Com indignação? Com medo? São muitas perguntas a um tempo. Estou que a própria dama não poderia responder exatamente, tal foi o abalo que lhe trouxe a declaração do moço. Em todo caso, não foi com incredulidade. Não posso dizer mais senão que a exclamação saiu tão frouxa, tão abafada que ele mal pôde ouvi-la. Pela sua parte, Carlos Maria disfarçou bem, ante os olhos de toda a sala; nem antes, nem durante, nem depois das palavras mostrou no rosto a menor comoção; tinha até umas sombras de riso cáustico, um riso de seu uso, quando mofava de alguém, parecia ter dito um epigrama. Contudo, mais de um olho de mulher espreitava a alma de Sofia, estudava o gesto da moça, tal ou qual acanhado, e as pálpebras teimosamente caídas. -A senhora está perturbada, disse ele; disfarce com o leque. Sofia maquinalmente entrou a abanar-se e levantou os olhos. Viu que muitos outros a fitavam, e empalideceu. Os minutos iam correndo, com a mesma brevidade dos anos; os primeiros cinco e os segundos iam longe; estavam no décimo terceiro, atrás deste iam apontando as asas de outro, e mais outro. Sofia disse ao braceiro que queria sentar-se. -Vou deixá-la e retiro-me. -Não, disse ela precipitadamente. Depois, emendou-se -O baile está bonito. -Está, mas eu quero levar comigo a melhor recordação da noite. Qualquer outra palavra que ouça agora será como o coaxar das rãs depois do canto de um lindo pássaro, um dos seus pássaros lá de casa. Onde quer que a deixe? -Ao lado de minha prima.
CAPÍTULO LXX RUBIÃO cedeu a cadeira, e acompanhou Carlos Maria, que atravessou a sala, e foi até o gabinete da entrada, onde estavam os sobretudos e uns dez homens conversando. Antes que o rapaz entrasse no gabinete, Rubião pegou-lhe do braço, familiarmente, para lhe perguntar alguma cousa,-fosse o que fosse,-mas, em verdade, para retê-lo consigo, e procurar sondá- lo. Começava a crer possível ou real uma idéia que o atormentava desde muitos dias. Agora, a conversação dilatada, os modos dela... Carlos Maria não tinha notícia da longa paixão do mineiro, guardada, mortificada, não se podendo confessar a ninguém, - esperando os benefícios do acaso,-contentando-se de pouco, da simples vista da pessoa, dormindo mal as noites, dando dinheiro para as operações mercantis... Que ele não tinha ciúmes do marido. Nunca a intimidade do casal lhe excitara os ódios contra o legítimo senhor. E lá iam meses e meses, sem alteração do sentimento, nem morte da esperança. Mas a possibilidade de um rival de fora veio atordoá-lo; aqui é que o ciúme trouxe ao nosso amigo uma dentada de sangue. -Que é? disse Carlos Maria voltando-se. Ao mesmo tempo entrou no gabinete, onde os dez homens, trata-vam de política, porque este baile,-ia-me esquecendo dizê-lo,- era dado cm casa de Camacho, a propósito dos anos da mulher. Quando os dous ali entraram, a conversação era geral, o assunto o mesmo, e todos falavam para todos,-um turbilhão de ditos, de pareceres, de afirmações diversas... Um, que era doutrinário, conseguiu dominar os outros, que se calaram por instantes, fumando. -Podem fazer tudo, disse o doutrinário, mas a punição moral é certa. As dívidas dos partidos pagam-se com juros até o último real; e até a última geração. Princípios não morrem; os partidos que o esquecem expiram no lodo e na ignomínia. Outro, meio calvo, não acreditava na punição moral, e dizia por que; mas um terceiro aludiu à demissão de uns coletores, e os espíritos, meio tontos com a doutrina, tomaram pé. Os coletores não tinham outra culpa, além da opinião; e nem ao menos se podia defender o ato com o merecimento dos substitutos. Um destes trazia às costas um desfalque, outro era cunhado de um tal Marques que dera um tiro de garrucha no delegado, em S. José dos Campos. . . E o novos tenentescoronéis? Verdadeiros réus de polícia. -Já se vai embora? perguntou Rubião ao moço, quando o viu tirar o sobretudo dentre os outros. -Já; estou com sono. Ajude-me a enfiar esta manga. Estou com sono. -Mas ainda é cedo; fique. O nosso Camacho não deseja que os rapazes saiam; quem é que há de dançar com as moças? Carlos Maria replicou sorrindo que era pouco dado a danças. Valsara com D. Sofia, por ser mestra no ofício; senão, nem isso. Estava com sono; preferia a cama à orquestra. E estendeu-lhe a mão com benignidade; Rubião apertou-lha, meio incerto. Não sabia que pensasse. O fato de sair, de a deixar no baile, em vez de esperar para acompanhá-la à carruagem, como de outras vezes. . . Podia ser engano dele. . . E pensava, recordava a noite de Santa Teresa, quando ele ousou declarar à moça o que sentia pegando-lhe na bela mão delicada... O major interrompera-os; mas por que não insistiu ele mais tarde? Nem ela o maltratou, nem o marido percebera cousa nenhuma. . . Aqui voltava a idéia do possível rival; é certo que se retirara com sono, mas os modos dela. . . Rubião ia à porta do salão, para ver Sofia, depois chegava-se a um canto ou à mesa do voltarete, inquieto, aborrecido.
CAPÍTULO LXXI EM CASA, ao despentear-se, Sofia falou daquele sarau como de uma cousa enfadonha. Bocejava, doíam-lhe as pernas. Palha discordava; era má disposição dela. Se Ihe doíam as pernas é porque dançara muito. Ao que retorquiu a mulher que, se não dançasse, teria morrido de tédio. E ia tirando os grampos, deitando-os num vaso de cristal os cabelos caíam-lhe aos poucos sobre os ombros, mal cobertos peia camisola de cambraia. Palha, por trás dela, disse-lhe que o Carlos Maria valsava muito bem. Sofia estremeceu; fitou-o no espelho, o rosto era plácido. Concordou que não valsava mal. -Não senhora, valsa muito bem. -Você louva os outros porque sabe que ninguém é capaz de o desbancar. Anda, meu vaidoso, já te conheço. Palha estendendo a mão e pegando-lhe no queixo, obrigou-a olhar para ele. Vaidoso por quê? por que é que ele era vaidoso? -Ai, gemeu Sofia; não me machuques. Palha beijou-lhe a espádua; ela sorriu, sem tédio, sem dor de cabeça, ao contrário daquela noite de Santa Teresa, em que relatou ao marido os atrevimentos do Rubião. É que os morros serão doentios, e as praias saudáveis. No dia seguinte, Sofia acordou cedo, ao som dos trilos da passarada de casa, que parecia dar-lhe um recado de alguém. Deixou-se estar na cama, e fechou os olhos para ver melhor. Ver melhor o quê? Não, seguramente, os morros doentios. A praia era outra cousa. Posta à janela, dali a meia hora, Sofia contemplava as ondas que vinham morrer defronte, e, ao longe, as que se levan-tavam e desfaziam à entrada da barra. A imaginosa dama pergun-tava a si mesma se aquilo era a valsa das águas, e deixava-se ir por essa torrente abaixo, sem velas nem remos. Deu consigo olhando para a rua, ao pé do mar, como procurando os sinais do homem que ali estivera, na antevéspera, alta noite. . . Não juro, mas cuido que achou os sinais. Ao menos, é certo que cotejou o achado com o texto da conversação "A noite era clara; fiquei cerca de uma hora, entre o mar e a sua casa. A senhora aposto que nem sonhava comigo? Entretanto, eu quase que ouvia a sua respiração. O mar batia com força, é verdade, mas o meu coração não batia menos rijamente; com esta diferença que o mar é estúpido, bate sem saber por que, e o meu coração sabe que batia pela senhora." Sofia teve um calafrio, procurou esquecer o texto, mas o texto ia-se repetindo"A noite era clara..."
CAPÍTULO LXXII ENTRE DUAS FRASES, sentiu que alguém lhe punha a mão no ombro; era o marido, que acabava de tomar café e ia para a cidade. Despediram-se afetuosamente; Cristiano recomendou-lhe Maria Benedita, que acordara muito aborrecida. -Já de pé! exclamou Sofia. -Quando eu desci, já a achei na sala de jantar. Acordou com a mania de ir para a roça; teve um sonho. . . não sei que. . . -Calundus! concluiu Sofia. E com os dedos hábeis e leves concertou a gravata ao marido, puxou-lhe a gola do fraque para diante, e despediram-se outra vez. Palha desceu e saiu; Sofia deixou-se estar à janela. Antes de dobrar a esquina, ele voltou a cabeça, e, na forma do costume, disseram adeus com a mão.
CAPÍTULO LXXIII "A NOITE ERA CLARA; fiquei cerca de uma hora entre o mar e a sua casa. A senhora aposto que..." Quando Sofia pôde arrancar-se de todo à janela, o relógio de baixo batia nove horas. Zangada, arrependida, jurou a si mesma, pela alma da mãe, não pensar mais em semelhante episódio. Considerou que não valia nada; o erro foi deixar que o rapaz chegasse ao fim dos seus atrevimentos. Verdade é que, procedendo assim, evitou algum grande escândalo, porque ele era capaz de a acompanhar até a cadeira e dizer-lhe o resto ao pé de outras pessoas. E o resto repetia-se ainda uma vez na memória dela, como um trecho musical teimoso, as mesmas palavras, e a mesma voz"A noite era clara; fiquei cerca de uma hora...”
CAPÍTULO LXXIV ENQUANTO ela repetia a declaração da véspera, Carlos Maria a os olhos, estirava os membros, e, antes de ir para o banho, vestir-se e dar um passeio a cavalo, reconstruiu a véspera. Tinha esse achava sempre nos sucessos do dia anterior algum fato, algum dito, alguma nota que lhe fazia bem. Aí é que o espírito se demorava; aí eram as estalagens do caminho, onde ele descavalgava, para beber vagarosamente um golpe d'água fresca. Se não havia sucesso desses,-ou se os havia só contrários, nem por isso as sensações eram desconfortativas; bastava-lhe o sabor de alguma palavra ele mesmo houvesse dito,-de algum gesto que fizesse, a contemplação subjetiva, o gosto de ter sentido viver,-para que a véspera não fosse um dia perdido. Na véspera figurava Sofia. Parece até que foi o principal da reconstrução, a fachada do edifício, larga e magnífica. Carlos Maria saboreou de memória toda a conversação da noite, mas, quando se lembrou da confissão de amor, sentiu-se bem e mal. Era um compromisso, um estorvo, uma obrigação; e, posto que o benefício corrigisse o tédio, o rapaz ficou entre uma e outra sensação, sem plano. Ao recordar-se da notícia que lhe deu de haver ido à Praia do Flamengo, na outra noite, não pôde suster o riso, porque não era verdade. ‘Nascera-lhe a idéia da própria conversação; mas nem lá foi nem pensara nisso. Afinal susteve o riso, e até arrependeu-se dele, o fato de haver mentido trouxe-lhe uma sensação de inferioridade que o abateu. Chegou a pensar em retificar o que dissera, logo que estivesse com Sofia, mas reconheceu que a emenda era pior que o soneto, e que há bonitos sonetos mentirosos. Depressa ergueu a alma. Viu de memória a sala, os homens, as mulheres, os leques impacientes, os bigodes despeitados, e estirou-se todo num banho de inveja e admiração. De inveja alheia, note bem; ele carecia desse sentimento ruim. A inveja e a admiração do; outros é que lhe davam ainda agora uma delícia íntima. A princesa do baile entregava-se-lhe. Definia assim a superioridade de Sofia, posto lhe conhecesse um defeito capital,-a educação. Achava que as maneiras polidas da moça vinham da imitação adulta, após o casamento, ou pouco antes, que ainda assim não subiam muito do meio em que vivia.
CAPÍTULO LXXV OUTRAS MULHERES vieram ali,- as que o preferiam aos demais homens no trato e na contemplação da pessoa. Se as requestava ou requestara todas? Não se sabe. Algumas, váé certo, porém, que se deleitava com todas elas. Tais havia de provada honestidade que folgavam de o trazer ao pé de si, para gostar o contacto de um belo homem, sem a realidade em o perigo da culpa,-como o especta-dor que se regala das paixões de Otelo, e sai do teatro com as mãos limpas da morte de Desdêmona. Vinham todas rodear o leito de Carlos Maria, tecendo-lhe a mesma grinalda. Nem todas seriam moças em flor; mas a distinção supria a juvenilidade. Carlos Maria recebia-as como um deus antigo devia receber, quieto no mármore, as lindas devotas e suas oferendas. No burburinho geral distinguia as vozes de todas,-não todas a um tempo,-mas às três e às quatro. A derradeira delas foi a da recente Sofia; escutou-a ainda namo-rado, mas sem o alvoroço do princípio, porque a lembrança das outras donas, pessoas de qualidade, diminuía agora a importância desta. Contudo, não podia negar que era mui atrativa e que valsava perfeitamente. Chegaria a amar com força? Nisto apareceu-lhe outra vez a mentira da praia . Levantou-se aborreci do da cama . "Que diabo me mandou dizer semelhante cousa?" Tornou a sentir o desejo de restabelecer a verdade- e desta vez mais seriamente que da outra. Mentir, pensava ele, era para os lacaios e seus congêneres. Daí a meia hora, trepava ao cavalo e saía de casa, que era na Rua dos Inválidos. Catete adiante, lembrou-se que a casa de Sofia era na Praia do Flamengo; nada mais natural que torcer a rédea, descer uma das ruas perpendiculares ao mar, e passar pela porta da valsista. Achá-la-ia talvez à janela; vê-la-ia corar, cumprimentá-lo. Tudo isto passou pela cabeça ao rapaz, em poucos segundos; chegou a dar um jeito à rédea, mas a alma,-não o cavalo,-a alma empinou; era ir muito depressa atrás dela. Deu outro jeito à rédea, e continuou o passeio.
CAPÍTULO LXXVI MONTAVA BEM. Toda a gente que passava, ou estava às portas, não se fartava de mirar a postura do moço , o garbo , a tranqüilidade régia com que se deixava ir. Carlos Maria,-e este era o ponto em que cedia à multidão,-recolhia as admirações todas, por ínfimas que fossem. Para adorá-lo, todos os homens faziam parte da humanidade.
CAPÍTULO LXXVII -JÁ DE PÉ! repetiu Sofia, ao ver a prima lendo os jornais. Maria Benedita teve um sobressalto, mas aquietou-se logo; dormira mal, e acordou cedo. Não estava para aquelas folias at tão tarde, disse ela; mas a outra replicou logo que era preciso acostumar-se, a vida do Rio de Janeiro não era a mesma da roça, dormir com as galinhas e acordar com os galos. Depois perguntou-lhe que impressões trouxera do baile; Maria Benedita levantou os ombros com indiferença, mas verbalmente respondeu que boas. As palavras saíam-lhe poucas e moles. Sofia, entretanto, ponderou-lhe que dançara muito, salvo polcas e valsas. E por que não havia de polcar e valsar também? A prima lançou-lhe uns olhos maus. -Não gosto. -Qual não gosta! É medo. -Medo? -Falta de costume, explicou Sofia. -Não gosto que um homem me aperte o corpo ao seu corpo, e ande comigo, assim, à vista dos outros. Tenho vexame. Sofia tornou-se séria; não se defendeu nem continuou, falou da roça, perguntou se era certo o que lhe dissera Cristiano, que ela queria ir para casa. Então a prima, que folheava os jornais, à toa, respondeu animadamente que sim; não podia viver sem a mãe. -Mas por quê? Você não estava tão contente conosco? Maria Benedita não disse nada; passeou os olhos em um dos jornais, como se procurasse alguma notícia, trincando o beiço, trêmula, inquieta. Sofia teimou em querer saber a causa daquela mudança repentina; pegou-lhe nas mãos, achou-as frias. -Você precisa casar, disse finalmente. Tenho já um noivo. Era Rubião; o Palha queria acabar por aí, casando o sócio com a prima; tudo ficava em casa, dizia ele à mulher. Esta tomou a si guiar o negócio. Acudia-lhe agora a promessa; tinha um noivo pronto. -Quem? perguntou Maria Benedita. -Uma pessoa. Crê-lo-eis, pósteros? Sofia não pôde soltar o nome de Rubião. Já uma vez, dissera ao marido havê-lo proposto, e era mentira. Agora indo a propô-lo deveras, o nome não lhe saiu da boca. Ciúmes? Seria singular que esta mulher, que não tinha amor àquele homem, não quisesse dá-lo de noivo à prima, mas a natureza é capaz de tudo, amigo e senhor. Inventou o ciúme de Otelo e o do cavaleiro Desgrieux, podia inventar este outro de uma pessoa que não quer ceder o que não quer possuir. -Mas quem? repetiu Maria Benedita. -Direi depois, deixe-me arranjar as cousas, respondeu Sofia, e mudou de conversa. Maria Benedita trocou de rosto, a boca encheu-se-lhe de riso, um riso de alegria e de esperança. Os olhos agradeceram a promessa, e disseram palavras que ninguém podia ouvir nem entender, palavras obscuras -Gosta de valsar; é o que é. Gosta de valsar quem? Provavelmente a outra. Tinha valsado tanto na véspera, com o mesmo Carlos Maria, que bem se poderia achar na dança um pretexto; Maria Benedita concluía agora que era o próprio e único motivo. Conversaram muito nos intervalos, é certo, mas naturalmente era dela que falavam, uma vez que a prima tinha a peito casá-la e só lhe pedia que deixasse arranjar as cousas. Talvez ele a achasse feia, ou sem graça. Uma vez, porém, que a prima queria arranjar as cousas... Tudo isso diziam os olhos gaios da menina.
CAPÍTULO LXXVIII RUBIÃO é que não perdeu a suspeita assim tão facilmente. Pensou em falar a Carlos Maria, interrogá-lo, e chegou a ir à Rua dos Inválidos, no dia seguinte, três vezes; não o encontrando, mudou de parecer. Encerrou-se por alguns dias; o Major Siqueira arrancou-o à solidão. Ia participar-lhe que se mudara para a Rua Dous de Dezembro. Gostou muito da casa do nosso amigo, das alfaias, do luxo, de todas as minúcias, ouros e bambinelas. Sobre este assunto discorreu longamente, relembrando alguns móveis antigos. Parou de repente, para dizer que o achava aborrecido; era natural, faltava-lhe ali um complemento. -O senhor é feliz, mas falta-lhe aqui uma cousa; falta-lhe mulher. O senhor precisa casar. Case-se, e diga que eu o engano. Rubião lembrou-se de Santa Teresa,-daquela famosa noite da conversação com Sofia, - e sentiu correr-lhe um frio pelas costas; mas a voz do major não tinha nenhum sarcasmo. Tão pouco era animada de interesse. A filha estava ainda qual a deixamos no capítulo XLIII, com a diferença que os quarenta anos vieram. Quarentona, solteirona. Gemeu-os consigo, logo de manhã, no dia em que os completou; não pôs fita nem rosa no cabelo. Nenhuma festa; tão somente um discurso do pai, ao almoço, lembrando-lhe a vida de criança, anedotas da mãe e da avó, um dominó de baile de máscaras, um batizado de 1848, a solitária de um Coronel Clodomiro, várias cousas assim de mistura, para entreter as horas. D. Tonica mal podia ouvi-lo; metida em si mesma, ia roendo o pão da solitude moral, ao passo que se arrependia dos últimos esforços empregados na busca de um marido. Quarenta anos; era tempo de parar. Nada disso lembrava agora ao major. Era sinceroachou que a casa de Rubião não tinha alma. E repetiu, ao despedir-se -Case-se, e diga que eu o engano.
CAPÍTULO LXXIX -E POR QUE NÃO? perguntou uma voz, depois que o major saiu. Rubião, apavorado, olhou em volta de si; viu apenas o cachorro, parado, olhando para ele. Era tão absurdo crer que a pergunta viria do próprio Quincas Borba,-ou antes do outro Quincas Borba, cujo espírito estivesse no corpo deste, que o nosso amigo sorriu com desdém, mas, ao mesmo tempo, executando o gesto do capítulo XLIX, estendeu a mão, e coçou amorosamente as orelhas e a nuca do cachorro,- ato próprio a dar satisfação ao possível espírito do finado. Era assim que o nosso amigo se desdobrava, sem público, diante de si mesmo.
CAPÍTULO LXXX MAS A VOZ repetiu-E por que não?-Sim; por que não havia de casar, continuou ele raciocinando. Mataria a paixão que o ia comendo aos poucos, sem esperança nem consolação. Demais, era a porta de um mistério. Casar, sim, casar logo e bem. Estava ao portão, quando esta idéia começou a abotoar; foi dali para dentro, subindo os degraus de pedra, abrindo a porta, sem consciência de nada. Ao fechar a porta, é que um pulo do Quincas Borba, que o viera acompanhando, fê-lo dar por si. Onde ficara o major? Quis descer para vê-lo, mas advertiu a tempo que acabava de o acompanhar até à rua. As pernas tinham feito tudo; elas é que o levaram por si mesmas, direitas, lúcidas, sem tropeço, para que ficasse à cabeça tão-somente a tarefa de pensar. Boas pernas! pernas a muletas naturais do espírito! Santas pernas! Elas o levaram ainda ao canapé, estenderam-se com ele, devagarinho, enquanto o espírito trabalhava a idéia do casamento. Era um modo de fugir a Sofia; podia ser ainda mais. Sim, podia ser também um modo de restituir à vida a unidade que perdera, com a troca do meio e da fortuna; mas esta consideração não era propriamente filha do espírito nem das pernas, mas de outra causa, que ele não distinguia bem nem mal, como a aranha. Que sabe a aranha a respeito de Mozart? Nada; entretanto, ouve com prazer uma sonata do mestre. O gato, que nunca leu Kant talvez um animal metafísico. Em verdade, o casamento podia ser o laço da unidade perdida. Rubião sentia-se disperso; os próprio amigos de trânsito, que ele amava tanto, que o cortejavam tanto, davam-lhe à vida um aspecto de viagem, em que a língua mudasse com as cidades, ora espanhol, ora turco. Sofia contribuía para esse e era tão diversa de si mesma, ora isto, ora aquilo, que os dias iam passando sem acordo fixo, nem desengano perpétuo. Rubião não tinha que fazer; para matar os dias longos e vazios, ia às sessões do júri, à Camara dos Deputados, à passagem dos batalhões, dava grandes passeios, fazia visitas desnecessárias, à noite, ou ia aos teatros, sem prazer. A casa era ainda um bom repouso ao espírito, com o seu luxo rutilante e os sonhos que vagavam no ar. Ultimamente, ocupava-se muito em ler; lia romances, mas só os históricos de Dumas pai, ou os contemporâneos de Feuillet, estes com dificuldade, por não conhecer bem a língua original. Dos primeiros sobravam traduções. Arriscava-se a algum mais, se lhe achava o principal dos outros, uma sociedade fidalga e régia. Aquelas cenas da corte de França, inventadas pelo maravilhoso Dumas, e os seus nobres espadachins e aventureiros, as condessas e os duques de Feuillet, metidos em estufas ricas, todos eles com palavras mui compostas polidas, altivas ou graciosas, faziam-lhe passar o tempo às carreiras Quase sempre, acabava com o livro caído e os olhos no ar, pensando. Talvez algum velho marquês defunto lhe repetisse anedotas de outras eras.
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CAPÍTULO LXI -QUE É QUE TEM aí na mão? inquiriu Camacho, logo que Rubião entrou no escritório. Rubião narrou o incidente da Rua da Ajuda. O advogado fez-lhe muitas perguntas sobre a criança, os pais, o número da casa; mas, o próprio Rubião pôs termo às respostas. -Não sabe, ao menos, o nome do pequeno? -Ouvi chamar Deolindo. Vamos ao que importa. Venho assinar a sua folha; recebi um número, e quero contribuir para... Camacho acudiu que não precisava de assinaturas. Em assinaturas a folha ia bem. O que ela precisava era de material tipográfico e desenvolvimento no texto; ampliar a matéria, pôr-lhe mais noticiário variedades, tradução de algum romance para o folhetim, movimento do porto, da praça, etc. Tinha anúncios, como viu. -Sim, senhor. -Estou com o capital quase subscrito. Bastam dez pessoas, e lá somos oito; eu e mais sete. Faltam dous. Com mais duas pessoas está completo o capital. -Quanto será? pensou Rubião. Camacho batia com um canivete na beira da escrivaninha, calado olhando às furtadelas para o outro. Rubião passou uma vista à sala, poucos móveis, alguns autos sobre um tamborete ao pé do advogado, estante com livros, Lobão, Pereira e Sousa, Dalloz, Ordenações do Reino, um retrato na parede, diante da escrivaninha. -Conhece? disse Camacho apontando para o retrato. -Não, senhor. -Veja se conhece. -Não posso saber. Nunes Machado? -Não, acudiu o ex-deputado dando à cara um ar pesaroso. Não pude obter um bom retrato dele. Vendem-se aí umas litografias que me não parecem boas. Não, aquele é o marquês. -De Barbacena? -Não, de Paraná; é o grande marquês, meu particular amigo. Tentou conciliar os partidos, e foi por isso que me achei com ele. Morreu cedo; a obra não pôde ir adiante. Hoje, se ele a quisesse, ter-me-ia contra si. Não! nada de conciliações; guerra de morte. Havemos de destruí-los; leia a Atalaia, meu bom companheiro de lutas; recebe-la-á em casa... -Não, senhor. -Por que não? Rubião baixou os olhos diante do nariz interrogativo do Camacho. -Não, senhor; sou firme, desejo ajudar os amigos. Receber a folha de graça.. . -Mas, se já lhe disse que de assinaturas vamos bem, retorquiu Camacho. -Sim, senhor, mas não disse também que faltam duas pessoas para o capital? -Duas, sim; temos oito. -Quanto é o capital? -O capital é de cinqüenta contos; cinco por pessoa. -Pois entro com cinco. Camacho agradeceu-lho em nome das idéias. Tinha intenção de convidá-lo para entrar com eles; era um direito adquirido pela convicção, pela fidelidade, pelo amor aos negócios públicos do seu recente amigo. Uma vez que espontaneamente se alistou, pedia-lhe que o desculpasse. Mostrou-lhe a lista dos outros; Camacho era o primeiro, entrava com a folha, o material existente, as assinaturas, e o trabalho hercúleo... Ia a emendar-se, mas repetiu corajosamentetrabalho hercúleo. Podia dizer que o era, sem deslustre, nem mentira; esganou cobras, em criança. Já agora era um vício; gostava da luta, morreria nela, envolvido na bandeira...
CAPÍTULO LXII RUBIÃO despediu-se. No corredor passou por ele uma senhora alta, vestida de preto, com um arruído de seda e vidrilhos. Indo a descer a escada, ouviu a voz do Camacho, mais alta do que até então-Oh! senhora baronesa! No primeiro degrau parou. A voz argentina da senhora começou a dizer as primeiras palavras; era uma demanda. Baronesa! E o nosso Rubião ia descendo a custo, de manso, para não parecer que ficara ouvindo. O ar metia-lhe pelo nariz acima um aroma fino e raro, cousa de tontear, o aroma deixado por ela. Baronesa! Chegou à porta da rua; viu parado um coupé; o lacaio, em pé, na calçada, o cocheiro na almofada, olhando; fardados ambos... Que novidade podia haver em tudo isso? Nenhuma. Uma senhora titular cheirosa e rica, talvez demandista para matar o tédio. Mas o caso particular é que ele, Rubião, sem saber por que, e apesar do seu próprio luxo, sentia-se o mesmo antigo professor de Barbacena.
CAPÍTULO LXIII NA RUA, encontrou Sofia com uma senhora idosa e outra moça. Não teve olhos para ver bem as feições destas; todo ele foi pouco para Sofia. Falaram-se acanhadamente, dous minutos apenas, e seguiram o seu caminho. Rubião parou adiante, e olhou para trás; mas as três senhoras iam andando sem voltar a cabeça. Depois do jantar, consigo "Irei lá hoje?" Reflexionou muito sem adiantar nada. Ora que sim, ora que não. Achara-lhe um modo esquisito; mas lembrava-se que sorriu,- pouco, mas sorriu. Pôs o caso à sorte. Se o primeiro carro que passasse viesse da direita, iria; se viesse da esquerda, não. E deixou-se estar na sala, no pouf central, olhando. Veio logo um tílburi da esquerda. Estava dito; não ia a Santa Teresa. Mas aqui a consciência reagiu; queria os próprios termos da propostaum carro. Tílburi não era carro. Devia ser o que vulgarmente se chama carro, uma caleça inteira ou meia, ou ainda uma vitória. Daí a pouco vieram chegando da direita muitas caleças, que voltavam de um enterro. Foi.
CAPÍTULO LXIV SOFIA DEU-LHE A MÃO gentilmente, sem sombra de rancor. As duas senhoras do passeio estavam com ela, em trajes caseiros, apresentou-as. A moça era prima, a velha era tia,-aquela tia da roça, autora da carta que Sofia recebeu no jardim das mãos do carteiro que logo depois deu uma queda. A tia chamava-se D. Maria Augusta; tinha uma fazendola, alguns escravos e dívidas, que lhe deixara o marido, além das saudades. A filha era Maria Benedita,-nome que a vexava, por ser de velha, dizia ela; mas a mãe retorquia-lhe que as velhas foram algum dia moças e meninas, e que os nomes adequados às pessoas eram imaginações de poetas e contadores de histórias. Maria Benedita era o nome da avó dela, afilhada de Luís de Vasconcelos, o vice-rei. Que queria mais? Contaram isto ao Rubião, sem que ela se vexasse. Sofia, ou por atenuar o caso, ou por outro motivo, acrescentou que os mais feios nomes eram lindos, segundo a pessoa. Maria Benedita era lindíssimo -Não lhe parece? concluiu voltando-se para Rubião. -Deixa de caçoada, prima! acudiu Maria Benedita, rindo. Podemos crer que a velha nem Rubião entenderam o dito,- a velha, porque começava a cochilar, - Rubião porque afagava um cãozinho que tinham dado a Sofia, pequeno, delgado, leve, buliçoso olhos negros, com um guizo ao pescoço. Mas, insistindo a dona da casa, ele respondeu que sim, sem saber o que era. Maria Benedita deu um muxoxo. Em verdade, não era uma beleza; não lhe pedissem olhos que fascinam, nem dessas bocas que segredam alguma cousa, ainda caladas; era natural, sem acanho de roceira; e tinha um donaire particular, que corrigia as incoerências do vestido. Nascera na roça e gostava da roça. A roça era perto, Iguaçu. De longe em longe vinha à cidade, passar alguns dias; mas, ao cabo dos dous primeiros, já estava ansiosa por tornar a casa. A educação foi sumárialer, escrever, doutrina e algumas obras de agulha. Nos últimos tempos (ia em dezenove anos), Sofia apertou com ela para aprender piano; a tia consentiu; Maria Benedita veio para a casa da prima, e ali esteve uns dezoito dias. Não pôde mais; doeram-lhe as saudades da mãe e voltou para a roça, deixando consternado o professor, que anunciou nela, desde os primeiros dias, um grande talento musical. -Oh! sem dúvida, um grande talento! Maria Benedita riu-se quando a prima lhe contou isto, e nunca mais pôde ver a sério o homem. Às vezes, no meio de uma lição, deitava a rirSofia contraía as sobrancelhas, a modo de ralho, e o pobre homem perguntava o que era, e de si mesmo explicava que havia de ser alguma lembrança de moça, e continuava a lição. Nem piano nem francês,-outra lacuna, que Sofia mal podia desculpar. D. Maria Augusta não compreendia a consternação da sobrinha. Para que francês! A sobrinha dizia-lhe que era indispensável para conversar, para ir às lojas, para ler um romance. . . -Sempre fui feliz sem francês, respondia a velha; e os meia-línguas da roça são a mesma cousa; não vivem pior que os crioulos. Um dia acrescentou -Nem por isso lhe hão de faltar noivos. Pode casar, já lhe disse que pode casar quando quiser, que eu também casei; e at deixar-me na roça, sozinha, morrer como uma besta velha... -Mamãe! -Não tenha pena, é só aparecer o noivo. Em aparecendo vá com ele, e deixe-me ficar. Olha Maria José o que fez comigo? Vive lá pelo Ceará. -Mas se o marido é juiz de direito, ponderava Sofia. -Torto que seja! Para mim é a mesma cousa. Cá fica o frangalho da velha. Casa, Maria Benedita, casa depressa; eu morrerei com Deus. Não terei filhos, mas terei Nossa Senhora, que é mãe de todos. Casa, anda, casa! Toda essa rabugem era cálculo; tinha em mira arredar a filha do matrimônio, excitando-lhe o terror e a piedade. Quando menos, retardar-lho. Não creio que revelasse esse pecado ao professor, nem que chegasse a entendê-loera obra de um egoísmo idoso e melindroso. D. Maria Augusta fora longamente querida; a. mãe era douda por ela, o marido amou-a até o último dia com a mesma intensidade. Mortos ambos, todas as suas saudades filiais e matrimoniais foram postas na cabeça das duas filhas. Uma fugira-lhe, casando. Ameaçada da solidão, se a outra casasse também, D. Maria Augusta fazia tudo o que podia por evitar o desastre.
CAPÍTULO LXV CURTA FOI A VISITA de Rubião. Às nove horas levantou-se ele discretamente, esperando qualquer palavra de Sofia, um pedido para que ficasse ainda algum tempo, que esperasse o marido que já vinha um espanto que fosseJá! mas nem isso. Sofia estendeu-lhe a mão, em que ele mal pôde tocar. Contudo, a moça, durante a visita, mostrou-se tão natural, tão sem azedume... Não teve seguramente os olhos longos e loquazes, como dantes; parecia até que não houvera nada nem bem nem mal, nem morangos, nem lua. Rubião tremia, não achava palavras, ela achava todas as que queria, e se era preciso olhar para ele, fazia-o direitamente, tranqüilamente. -Lembranças ao nosso Palha, murmurou ele de chapéu e bengala na mão. -Obrigada! Foi fazer uma visita; parece que ouço passos; há de ser ele. Não era ele, era Carlos Maria. Rubião ficou espantado de o ver ali, mas achou logo que a presença da fazendeira e da filha explicaria tudo; podia ser até que fossem aparentados. -Ia saindo, quando o senhor entrou, disse-lhe Rubião depois de o ver sentado ao pé de D. Maria Augusta. -Ah! respondeu o outro, olhando para o retrato de Sofia. Sofia foi até à porta despedir-se do Rubião; disse-lhe que o marido ficaria com pena de não estar em casa; mas que a visita era imperiosa. Negócios... Iria pedir-lhe desculpa. -Que desculpa? acudiu Rubião. Parece que quis dizer ainda alguma cousa; mas o aperto de mão de Sofia e a reverência que esta lhe fez deram-lhe o sinal de despedida. Rubião inclinou-se, atravessou o jardim, ouvindo a voz de Carlos Maria, na sala -Vou denunciar seu marido, minha senhora; é homem de muito mau gosto. Rubião parou. -Por quê? disse Sofia. -Tem este seu retrato na sala, continuou Carlos Maria; a senhora é muito mais bela, infinitamente mais bela que a pintura. Comparem, minhas senhoras.
CAPÍTULO LXVI "COMO ELE DIZ aquelas cousas tão naturalmente! pensou Rubião, em casa, relembrando as palavras de Carlos Maria. Desfazer no retrato só para elogiar a pessoa! Note-se que o retrato é muito parecido."
CAPÍTULO LXVII DE MANHÃ, na cama, teve um sobressalto. O primeiro jornal que abriu foi a Atalaia. Leu o artigo editorial, uma correspondência e algumas notícias. De repente, deu com o seu nome. -Que é isto? Era o seu próprio nome impresso, rutilante, multiplicado, nada menos que uma notícia do caso da Rua da Ajuda. Depois do sobressalto, aborrecimento. Que diacho de idéia aquela de imprimir um fato particular, contado em confiança? Não quis ler nada; desde que percebeu o que era deitou a folha ao chão, e pegou em outra. Infelizmente, perdera a serenidade, lia por alto, pulava algumas linhas, não entendia outras, ou dava por si no fim de uma coluna sem saber como viera escorregando até ali. Ao levantar-se, sentou-se na poltrona, ao pé da cama, e pegou da Atalaia. Lançou os olhos pela notíciaera mais de uma coluna. Coluna e tanto para cousa tão diminuta! pensou consigo. E a fim de ver como é que Camacho enchera o papel, leu tudo, um pouso às pressas, vexado dos adjetivos e da descrição dramática do caso. -Foi bem feito! disse em voz alta. Quem me mandou ser linguarudo? Passou ao banho, vestiu-se, penteou-se, sem esquecer a bisbilhotice da folha, acanhado com a publicação de um negócio, que ele reputava mínimo, e ainda mais pelo encarecimento que lhe dera o escritor, como se tratasse de dizer bem ou mal em política. Ao café, pegou novamente na folha, para ler outras cousas, nomeações do governo, um assassinato em Garanhuns, meteorologia, até que a vista desastrada foi cair na notícia, e leu-a então com pausa. Aqui confessou Rubião que bem podia crer na sinceridade do escritor. O entusiasmo da linguagem explicava-se pela impressão que lhe ficou do fato; tal foi ela que lhe não permitiu ser mais sóbrio. Naturalmente é o que foi. Rubião recordou a sua entrada no escritório do Camacho, o modo por que falou; e daí tornou atrás, ao próprio ato. Estirado no gabinete, evocou a cenao menino, o carro, os cavalos, o grito, o salto que deu, levado de um ímpeto irresistível. - Agora mesmo não podia explicar o negócio; foi como se lhe tivesse passado uma sombra pelos olhos. . . Atirou-se à criança, e aos cavalos, cego e surdo, sem atender ao próprio risco... E podia ficar ali, embaixo dos animais, esmagado pelas rodas, morto ou ferido; ferido que fosse. . . Podia ou não podia? Era impossível negar que a situação foi grave... A prova é que os pais e a vizinhança. . . Rubião interrompeu as reflexões para ler ainda a notícia. Que era bem escrita, era. Trechos havia que releu com muita satisfação. O diabo do homem parecia ter assistido à cena. Que narração! que viveza de estilo! Alguns pontos estavam acrescentados,-confusão de memória,-mas o acréscimo não ficava mal. E certo orgulho que lhe notou ao repetir-lhe o nome? "O nosso amigo, o nosso distintíssimo amigo, o nosso valente amigo..." Ao almoço, riu-se de si mesmo; achou-se mortificado em demasia. Afinal, que tinha que o outro desse aos seus leitores uma notícia que era verdadeira, que era interessante, dramática,-e seguramente,- não vulgar? Saindo, recebeu alguns cumprimentos; Freitas chamou-lhe S. Vicente de Paula. E o nosso amigo sorria, agradecia, diminuía-se, não era nada -Nada? replicou alguém. Dê-me muitos desses nadas. Salvar uma criança com risco da própria vida... Rubião ia concordando, ouvindo, sorrindo; contava a cena a alguns curiosos, que a queriam da própria boca do autor. Certos ouvintes respondiam com proezas suas,- um que salvara uma lei um homem, outro uma menina, prestes a afogar-se no Boqueirão do Passeio, estando a tomar banho. Vinham também suicídios malogrados, por intervenção do ouvinte, que tomou a pistola ao infeliz. e fê-lo jurar. . . Cada gloriazinha oculta picava o ovo, e punha a cabeça de fora, olho aberto, sem penas, em volta da glória máxima do Rubião. Também teve invejosos, alguns que nem o conheciam, só por ouvi-lo louvar em voz alta. Rubião foi agradecer a notícia ao Camacho, não sem alguma censura pelo abuso de confiança, mas uma censura mole, ao canto da boca. Dali foi comprar uns tantos exemplares da folha para os amigos de Barbacena. Nenhuma outra transcreveu a notícia; ele, a conselho do Freitas, fê-la reimprimir nos a-pedidos do Jornal do Comércio, interlinhada.
CAPÍTULO LXVIII MARIA BENEDITA consentiu finalmente em aprender francês e piano. Durante quatro dias a prima teimou com ela, a todas as horas, de tal arte e maneira, que a mãe da moça resolveu apressar a volta à fazenda, para evitar que ela acabasse aceitando. A filha resistiu muito; respondia que eram cousas supérfluas, que moça de roça não precisa de prendas da cidade. Uma noite, porém, estando ali Carlos Maria, pediu-lhe este que tocasse alguma cousa, Maria Benedita fez-se vermelha. Sofia acudiu com uma mentira -Não lhe peça isso; ainda não tocou depois que veio. Diz que agora só toca para os roceiros. -Pois faça de conta que somos roceiros, insistiu o moço. Mas passou logo a outra cousa, ao baile da baronesa do Piauí (a mesma que o nosso amigo Rubião encontrou no escritório do Camacho), um baile esplêndido, oh! esplêndido! A baronesa prezava-o muito, disse ele. No dia seguinte, Maria Benedita declarou à prima que estava pronta a aprender piano e francês, rabeca e até russo, se quisesse. A dificuldade era vencer a mãe. Esta, quando soube da resolução da filha, pôs as mãos na cabeça. Que francês? que piano? Bradou que não, ou então que deixasse de ser sua filha; podia ficar, tocar, cantar, falar cabinda ou a língua do diabo que os levasse a todos. Palha é que a persuadiu finalmente; disse-lhe que, por mais supérfluas que lhe parecessem aquelas prendas, eram o mínimo dos adornos de uma educação de sala. - Mas eu criei minha filha na roça e para a roça, interrompeu a tia. -Para a roça? Quem sabe lá para que cria os filhos? Meu pai destinava-me a padre; é por isso que arranho algum latim. A senhora não há de viver sempre; os seus negócios andam atrapalhados. Pode acontecer, que Maria Benedita fique ao desamparo... Ao desamparo, não digo; enquanto vivermos somos todos uma só pessoa. Mas não é melhor prevenir? Podia ser até que, se lhe faltássemos todos. ela vivesse à larga, só com ensinar francês e piano. Basta que os saiba para estar em condições melhores. É bonita, como a senhora foi no seu tempo; e possui raras qualidades morais. Pode achar marido rico. Sabe a senhora se já tenho alguém em vista, pessoa séria? -Sim? Então ela vai aprender francês, piano e namoro? -Que namoro? Refiro-me a um pensamento íntimo, a um plano que me parece adequado à felicidade dela e de sua mãe. . . Pois eu havia... Ora, tia Augusta! Palha mostrou-se tão mortificado, que a tia deixou o tom áspero pelo tom seco. Resistiu ainda; mas a noite deu-lhe bons conselhos. O estado dos seus negócios, e a possibilidade de um genro abastado fizeram mais que outras razões. Os melhores genros da roça aliavam-se a outras fazendas, a famílias de representação e riqueza segura. Dous dias depois acharam um modus vivendi. Maria Benedita ficaria com a prima; iriam de quando em quando à roça, e a tia também viria à capital, para vê-las. Palha chegou a dizer que, logo que o estado da praça o permitisse, arranjaria meio de liquidar-lhe os negócios e transportá-la para aqui. Mas a isto a boa senhora abanou a cabeça. Não se pense que tudo isso foi tão fácil como aí fica escrito. Na prática, vieram os óbices, amofinações, saudades, rebeliões de Maria Benedita. Dezoito dias depois da volta da mãe à fazenda, quis ir visitá-la, e a prima acompanhou-a; estiveram lá uma semana. A mãe, dous meses depois, veio passar uns dias aqui. Sofia acostumava habilmente a prima às distrações da cidade, teatros, visitas, passeios, reuniões em casa, vestidos novos, chapéus lindos, jóias. Maria Benedita era mulher, posto que mulher esquisita, gostou de tais cousas, mas tinha para si que, logo que quisesse, podia arrebentar todos esses liames, e andar para a roça. A roça vinha ter com ela, às vezes, em sonho ou simples devaneio. Depois dos primeiros saraus, quando voltava para casa, não eram as sensações da noite que lhe enchiam a alma, eram as saudades de Iguaçu. Cresciam-lhe mais a certas horas do dia, quando a quietação da casa e da rua era completa. Então batia as asas para a varanda da velha casa, onde bebia café, ao pé da mãe; pensava na escravaria, nos móveis antigos, nas botinas chinelas que lhe mandara o padrinho, um fazendeiro rico de S. João d'EI-Rei,- e que lá ficaram em casa. Sofia não consentiu que ela as trouxesse. Os mestres de francês e piano eram homens sabedores do ofício. Sofia teve modo de dizer-lhes em particular que a prima vexava-se de aprender tão tarde, e pediu-lhes que não falassem nunca de tal discípula. Prometeram que sim; o de piano apenas referiu o pedido a alguns colegas d'arte, que lhe acharam graça, e contaram outras anedotas da clientela. O certo é que Maria Benedita aprendia com singular facilidade, estudava com afinco, quase todas as horas, a tal ponto que a mesma prima julgava acertado interrompê-la. -Descansa, filha de Deus! -Deixa recobrar o tempo perdido, respondia ela rindo. Então Sofia inventava passeios, à toa, para fazê-la descansar. Ora um bairro, ora outro. Em certas ruas, Maria Benedita não perdia tempolia as tabuletas francesas, e perguntava pelos substantivos novos que a prima, algumas vezes, não sabia dizer o que eram, tão estritamente adequado era o seu vocabulário às cousas do vestido, da sala e do galanteio. Mas não era só nessas disciplinas que Maria Benedita fazia progressos rápidos. A pessoa ajustara-se ao meio, mais depressa do que fariam crer o gosto natural e a vida da roça. Já competia com a outra, embora houvesse nesta um desgarre, e não sei que expressão particular que, para assim dizer, dava cor a todas as linhas e gestos da figura. Não obstante essa diferença, certo que a outra era vista e notada ao pé dela, de tal jeito que Sofia, que começara por louvá-la em toda a parte, não a deslouvava agora, mas ouvia calada as admirações. Falava bem;-mas, quando calava, era por muito tempo; dizia que eram os seus "calundus". Contradançava sem vida, que é a perfeição desse gênero de recreio; gostava muito de ver polcar e valsar. Sofia, imaginando que era por medo que a prima não valsava nem polcava, quis dar-lhe algumas lições em casa, sozinhas, com o marido ao piano; mas a prima recusava sempre. -Isso é ainda um bocadinho de casca da roça, disse-lhe uma vez Sofia. Maria Benedita sorriu de um modo tão particular, que a outra não insistiu. Não foi riso de vexame, nem de despeito, nem de desdém. Desdém, por quê? Contudo, é certo que o riso parecia vir de cima. Não menos o é que Sofia polcava e valsava com ardor, e ninguém se pendurava melhor do ombro do parceiro; Carlos Maria, que era raro dançar, só valsava com Sofia,- dous ou três giros, dizia ele;- Maria Benedita contou uma noite quinze minutos.
CAPÍTULO LXIX OS QUINZE MINUTOS foram contados no relógio do Rubião, que estava ao pé da Maria Benedita, e a quem ela perguntou duas vezes que horas eram, no princípio e no fim da valsa. A própria moça inclinou-se para ver bem o ponteiro dos minutos. -Está com sono? perguntou Rubião. Maria Benedita olhou para ele de soslaio. Viu-lhe o rosto plácido sem intenção nem riso. -Não, respondeu; digo-lhe até que estou com medo que prima Sofia se lembre de ir cedo para casa. -Não vai cedo. Já acabou a desculpa de Santa Teresa, por causa da subida. A casa fica perto daqui. De fato, as duas moravam agora na Praia do Flamengo, e o baile era na Rua dos Arcos. É de saber que tinham decorrido oito meses desde o princípio do capítulo anterior, e muita cousa estava mudada. Rubião sócio do marido de Sofia, em uma casa de importação, à Rua da Alfândega, sob a firma Palha e Compª. Era o negócio que este ia propor-lhe, naquela noite, em que achou o Dr. Camacho na casa de Botafogo Apesar de fácil, Rubião recuou algum tempo. Pediam-lhe uns bons pares de contos de réis, não entendia de comércio, não lhe tinha inclinação. Demais, os gastos particulares eram já grandes; o capital precisava do regímen do bom juro e alguma poupança, a ver se recobrava as cores e as carnes primitivas. O regímen que lhe indicavam não era claro; Rubião não podia compreender os algarismos do Palha, cálculos de lucros, tabelas de preço, direitos da alfândega, nada; mas, a linguagem falada supria a escrita. Palha dizia cousas extraordinárias, aconselhava ao amigo que aproveitasse a ocasião para por o dinheiro a caminho, multiplicá-lo. Se tinha medo, era diferente; ele, Palha, faria o negócio com John Roberts, sócio que lei da Casa Wilkinson, fundada em 1844, cujo chefe voltou para a Inglaterra, e era agora membro do Parlamento. Rubião não cedeu logo; pediu prazo, cinco dias. Consigo era mais livre mas desta vez a liberdade só servia para atordoá-lo. Computou os dinheiros despendidos, avaliou os rombos feitos no cabedal, que lhe deixara o filósofo. Quincas Borba, que estava com ele no gabinete, deitado, levantou casualmente a cabeça e fitou-o. Rubião estremeceu; a suposição de que naquele Quincas Borba podia estar a alma do outro nunca se lhe varreu inteiramente do cérebro. Desta vez chegou a verlhe um tom de censura nos olhos; riu-se, era tolice; cachorro não podia ser homem. Insensivelmente, porém, abaixou a mão e coçou as orelhas ao animal, para captá-lo. Atrás dos motivos de recusa vieram outros contrários. E se o negócio rendesse? Se realmente lhe multiplicasse o que tinha? Acrescia que a posição era respeitável, e podia trazer-lhe vantagens na eleição, quando houvesse de propor-se ao Parlamento, como o velho chefe da Casa Wilkinson. Outra razão mais forte ainda era o receio de magoar o Palha, de parecer que lhe não confiava dinheiros, quando era certo que, dias antes, recebera parte da dívida antiga, e a outra parte restante devia ser-lhe restituída dentro de dous meses. Nenhum desses motivos era pretexto de outro; vinham de si mesmos. Sofia só apareceu no fim, sem deixar de estar nele, desde o princípio, idéia latente, inconsciente, uma das cousas últimas do ato, e a única dissimulada. Rubião abanou a cabeça para expedi-la, e levantou-se. Sofia (dona astuta!) recolheu-se à inconsciência do homem, respeitosa da liberdade moral, e deixou-o resolver por si mesmo que entraria de sócio com o marido, mediante certas cláusulas de segurança. Foi assim que se fez a sociedade comercial; assim é que Rubião legalizou a assiduidade das suas visitas. -Senhor Rubião, disse Maria Benedita depois de alguns segundos de silêncio, não lhe parece que minha prima é bem bonita? -Não desfazendo na senhora, acho. -Bonita e bem feita Rubião aceitou o complemento. Um e outro acompanharam com os olhos o par de valsistas, que passeava ao longo do salão. Sofia estava magnífica. Trajava de azul escuro, mui decotada, -pelas razões ditas no capítulo XXXV; os braços nus, cheios, com uns tons de ouro claro, ajustavam-se às espáduas e aos seios, tão acostumados ao gás do salão. Diadema de pérolas feitiças, tão bem acabadas, que iam de par com as duas pérolas naturais, que lhe ornavam as orelhas, e que Rubião lhe dera um dia. Ao lado dela, Carlos Maria não ficava mal. Era um rapaz galhardo, como sabemos, e trazia os mesmos olhos plácidos do almoço do Rubião. Não tinha as maneiras súbditas, nem as curvas reverentes dos outros rapazes; exprimia-se com a graça de um rei benévolo Entretanto, se, à primeira vista, parecia fazer apenas um obséquio àquela senhora, não é menos certo que ia desvanecido, por trazer ao lado a mais esbelta mulher da noite. Os dous sentimentos não se contradiziam; fundiam-se ambos na adoração que este moço tinha de si mesmo. Assim, o contacto de Sofia era para ele como a prosternação de uma devota. Não se admirava de nada. Se um dia acordasse imperador, só se admiraria da demora do ministério em vir cumprimentá-lo. -Vou descansar um pouco, disse Sofia. -Está cansada ou... aborrecida? perguntou-lhe o braceiro -Oh! cansada apenas! Carlos Maria, arrependido de haver suposto a outra hipótese, deu se pressa em eliminá-la. -Sim, creio; por que é que estaria aborrecida? Mas eu afirmo que é capaz de fazer-me o sacrifício de passear ainda algum tempo. Cinco minutos? -Cinco minutos. -Nem mais um que seja? Pela minha parte passearia a eternidade. Sofia abaixou a cabeça. -Com a senhora, note bem. Sofia deixou-se ir com os olhos no chão, sem contestar, sem concordar, sem agradecer, ao menos. Podia não ser mais que uma galanteria, e as galanterias é de uso que se agradeçam. Já lhe tinha ouvido outrora palavras análogas, dandolhe a primazia entre as mulheres deste mundo. Deixou de as ouvir durante seis meses,-quatro que ele gastou em Petrópolis, dous em que lhe não apareceu. Ultimamente é que tornou a freqüentar a casa, a dizer-lhe finezas daquelas ora em particular, ora à vista de toda a gente. Deixou-se ir; e ambos foram andando calados, calados, calados,-até que ele rompeu o silêncio, notando-lhe que o mar defronte da casa dela batia com muita força, na noite anterior. -Passou lá? perguntou Sofia. -Estive lá; ia pelo Catete, já tarde, e lembrou-me descer à Praia do Flamengo. A noite era clara; fiquei cerca de uma hora, entre o mar e a sua casa. A senhora aposto que nem sonhava comigo? Entretanto, eu quase que ouvia a sua respiração. Sofia tentou sorrir; ele continuou -O mar batia com força, é verdade, mas o meu coração não batia menos rijamente--com esta diferença que o mar estúpido, bate sem saber por que, e o meu coração sabe que batia pela senhora -Oh! murmurou Sofia. Com espanto? Com indignação? Com medo? São muitas perguntas a um tempo. Estou que a própria dama não poderia responder exatamente, tal foi o abalo que lhe trouxe a declaração do moço. Em todo caso, não foi com incredulidade. Não posso dizer mais senão que a exclamação saiu tão frouxa, tão abafada que ele mal pôde ouvi-la. Pela sua parte, Carlos Maria disfarçou bem, ante os olhos de toda a sala; nem antes, nem durante, nem depois das palavras mostrou no rosto a menor comoção; tinha até umas sombras de riso cáustico, um riso de seu uso, quando mofava de alguém, parecia ter dito um epigrama. Contudo, mais de um olho de mulher espreitava a alma de Sofia, estudava o gesto da moça, tal ou qual acanhado, e as pálpebras teimosamente caídas. -A senhora está perturbada, disse ele; disfarce com o leque. Sofia maquinalmente entrou a abanar-se e levantou os olhos. Viu que muitos outros a fitavam, e empalideceu. Os minutos iam correndo, com a mesma brevidade dos anos; os primeiros cinco e os segundos iam longe; estavam no décimo terceiro, atrás deste iam apontando as asas de outro, e mais outro. Sofia disse ao braceiro que queria sentar-se. -Vou deixá-la e retiro-me. -Não, disse ela precipitadamente. Depois, emendou-se -O baile está bonito. -Está, mas eu quero levar comigo a melhor recordação da noite. Qualquer outra palavra que ouça agora será como o coaxar das rãs depois do canto de um lindo pássaro, um dos seus pássaros lá de casa. Onde quer que a deixe? -Ao lado de minha prima.
CAPÍTULO LXX RUBIÃO cedeu a cadeira, e acompanhou Carlos Maria, que atravessou a sala, e foi até o gabinete da entrada, onde estavam os sobretudos e uns dez homens conversando. Antes que o rapaz entrasse no gabinete, Rubião pegou-lhe do braço, familiarmente, para lhe perguntar alguma cousa,-fosse o que fosse,-mas, em verdade, para retê-lo consigo, e procurar sondá- lo. Começava a crer possível ou real uma idéia que o atormentava desde muitos dias. Agora, a conversação dilatada, os modos dela... Carlos Maria não tinha notícia da longa paixão do mineiro, guardada, mortificada, não se podendo confessar a ninguém, - esperando os benefícios do acaso,-contentando-se de pouco, da simples vista da pessoa, dormindo mal as noites, dando dinheiro para as operações mercantis... Que ele não tinha ciúmes do marido. Nunca a intimidade do casal lhe excitara os ódios contra o legítimo senhor. E lá iam meses e meses, sem alteração do sentimento, nem morte da esperança. Mas a possibilidade de um rival de fora veio atordoá-lo; aqui é que o ciúme trouxe ao nosso amigo uma dentada de sangue. -Que é? disse Carlos Maria voltando-se. Ao mesmo tempo entrou no gabinete, onde os dez homens, trata-vam de política, porque este baile,-ia-me esquecendo dizê-lo,- era dado cm casa de Camacho, a propósito dos anos da mulher. Quando os dous ali entraram, a conversação era geral, o assunto o mesmo, e todos falavam para todos,-um turbilhão de ditos, de pareceres, de afirmações diversas... Um, que era doutrinário, conseguiu dominar os outros, que se calaram por instantes, fumando. -Podem fazer tudo, disse o doutrinário, mas a punição moral é certa. As dívidas dos partidos pagam-se com juros até o último real; e até a última geração. Princípios não morrem; os partidos que o esquecem expiram no lodo e na ignomínia. Outro, meio calvo, não acreditava na punição moral, e dizia por que; mas um terceiro aludiu à demissão de uns coletores, e os espíritos, meio tontos com a doutrina, tomaram pé. Os coletores não tinham outra culpa, além da opinião; e nem ao menos se podia defender o ato com o merecimento dos substitutos. Um destes trazia às costas um desfalque, outro era cunhado de um tal Marques que dera um tiro de garrucha no delegado, em S. José dos Campos. . . E o novos tenentescoronéis? Verdadeiros réus de polícia. -Já se vai embora? perguntou Rubião ao moço, quando o viu tirar o sobretudo dentre os outros. -Já; estou com sono. Ajude-me a enfiar esta manga. Estou com sono. -Mas ainda é cedo; fique. O nosso Camacho não deseja que os rapazes saiam; quem é que há de dançar com as moças? Carlos Maria replicou sorrindo que era pouco dado a danças. Valsara com D. Sofia, por ser mestra no ofício; senão, nem isso. Estava com sono; preferia a cama à orquestra. E estendeu-lhe a mão com benignidade; Rubião apertou-lha, meio incerto. Não sabia que pensasse. O fato de sair, de a deixar no baile, em vez de esperar para acompanhá-la à carruagem, como de outras vezes. . . Podia ser engano dele. . . E pensava, recordava a noite de Santa Teresa, quando ele ousou declarar à moça o que sentia pegando-lhe na bela mão delicada... O major interrompera-os; mas por que não insistiu ele mais tarde? Nem ela o maltratou, nem o marido percebera cousa nenhuma. . . Aqui voltava a idéia do possível rival; é certo que se retirara com sono, mas os modos dela. . . Rubião ia à porta do salão, para ver Sofia, depois chegava-se a um canto ou à mesa do voltarete, inquieto, aborrecido.
CAPÍTULO LXXI EM CASA, ao despentear-se, Sofia falou daquele sarau como de uma cousa enfadonha. Bocejava, doíam-lhe as pernas. Palha discordava; era má disposição dela. Se Ihe doíam as pernas é porque dançara muito. Ao que retorquiu a mulher que, se não dançasse, teria morrido de tédio. E ia tirando os grampos, deitando-os num vaso de cristal os cabelos caíam-lhe aos poucos sobre os ombros, mal cobertos peia camisola de cambraia. Palha, por trás dela, disse-lhe que o Carlos Maria valsava muito bem. Sofia estremeceu; fitou-o no espelho, o rosto era plácido. Concordou que não valsava mal. -Não senhora, valsa muito bem. -Você louva os outros porque sabe que ninguém é capaz de o desbancar. Anda, meu vaidoso, já te conheço. Palha estendendo a mão e pegando-lhe no queixo, obrigou-a olhar para ele. Vaidoso por quê? por que é que ele era vaidoso? -Ai, gemeu Sofia; não me machuques. Palha beijou-lhe a espádua; ela sorriu, sem tédio, sem dor de cabeça, ao contrário daquela noite de Santa Teresa, em que relatou ao marido os atrevimentos do Rubião. É que os morros serão doentios, e as praias saudáveis. No dia seguinte, Sofia acordou cedo, ao som dos trilos da passarada de casa, que parecia dar-lhe um recado de alguém. Deixou-se estar na cama, e fechou os olhos para ver melhor. Ver melhor o quê? Não, seguramente, os morros doentios. A praia era outra cousa. Posta à janela, dali a meia hora, Sofia contemplava as ondas que vinham morrer defronte, e, ao longe, as que se levan-tavam e desfaziam à entrada da barra. A imaginosa dama pergun-tava a si mesma se aquilo era a valsa das águas, e deixava-se ir por essa torrente abaixo, sem velas nem remos. Deu consigo olhando para a rua, ao pé do mar, como procurando os sinais do homem que ali estivera, na antevéspera, alta noite. . . Não juro, mas cuido que achou os sinais. Ao menos, é certo que cotejou o achado com o texto da conversação "A noite era clara; fiquei cerca de uma hora, entre o mar e a sua casa. A senhora aposto que nem sonhava comigo? Entretanto, eu quase que ouvia a sua respiração. O mar batia com força, é verdade, mas o meu coração não batia menos rijamente; com esta diferença que o mar é estúpido, bate sem saber por que, e o meu coração sabe que batia pela senhora." Sofia teve um calafrio, procurou esquecer o texto, mas o texto ia-se repetindo"A noite era clara..."
CAPÍTULO LXXII ENTRE DUAS FRASES, sentiu que alguém lhe punha a mão no ombro; era o marido, que acabava de tomar café e ia para a cidade. Despediram-se afetuosamente; Cristiano recomendou-lhe Maria Benedita, que acordara muito aborrecida. -Já de pé! exclamou Sofia. -Quando eu desci, já a achei na sala de jantar. Acordou com a mania de ir para a roça; teve um sonho. . . não sei que. . . -Calundus! concluiu Sofia. E com os dedos hábeis e leves concertou a gravata ao marido, puxou-lhe a gola do fraque para diante, e despediram-se outra vez. Palha desceu e saiu; Sofia deixou-se estar à janela. Antes de dobrar a esquina, ele voltou a cabeça, e, na forma do costume, disseram adeus com a mão.
CAPÍTULO LXXIII "A NOITE ERA CLARA; fiquei cerca de uma hora entre o mar e a sua casa. A senhora aposto que..." Quando Sofia pôde arrancar-se de todo à janela, o relógio de baixo batia nove horas. Zangada, arrependida, jurou a si mesma, pela alma da mãe, não pensar mais em semelhante episódio. Considerou que não valia nada; o erro foi deixar que o rapaz chegasse ao fim dos seus atrevimentos. Verdade é que, procedendo assim, evitou algum grande escândalo, porque ele era capaz de a acompanhar até a cadeira e dizer-lhe o resto ao pé de outras pessoas. E o resto repetia-se ainda uma vez na memória dela, como um trecho musical teimoso, as mesmas palavras, e a mesma voz"A noite era clara; fiquei cerca de uma hora...”
CAPÍTULO LXXIV ENQUANTO ela repetia a declaração da véspera, Carlos Maria a os olhos, estirava os membros, e, antes de ir para o banho, vestir-se e dar um passeio a cavalo, reconstruiu a véspera. Tinha esse achava sempre nos sucessos do dia anterior algum fato, algum dito, alguma nota que lhe fazia bem. Aí é que o espírito se demorava; aí eram as estalagens do caminho, onde ele descavalgava, para beber vagarosamente um golpe d'água fresca. Se não havia sucesso desses,-ou se os havia só contrários, nem por isso as sensações eram desconfortativas; bastava-lhe o sabor de alguma palavra ele mesmo houvesse dito,-de algum gesto que fizesse, a contemplação subjetiva, o gosto de ter sentido viver,-para que a véspera não fosse um dia perdido. Na véspera figurava Sofia. Parece até que foi o principal da reconstrução, a fachada do edifício, larga e magnífica. Carlos Maria saboreou de memória toda a conversação da noite, mas, quando se lembrou da confissão de amor, sentiu-se bem e mal. Era um compromisso, um estorvo, uma obrigação; e, posto que o benefício corrigisse o tédio, o rapaz ficou entre uma e outra sensação, sem plano. Ao recordar-se da notícia que lhe deu de haver ido à Praia do Flamengo, na outra noite, não pôde suster o riso, porque não era verdade. ‘Nascera-lhe a idéia da própria conversação; mas nem lá foi nem pensara nisso. Afinal susteve o riso, e até arrependeu-se dele, o fato de haver mentido trouxe-lhe uma sensação de inferioridade que o abateu. Chegou a pensar em retificar o que dissera, logo que estivesse com Sofia, mas reconheceu que a emenda era pior que o soneto, e que há bonitos sonetos mentirosos. Depressa ergueu a alma. Viu de memória a sala, os homens, as mulheres, os leques impacientes, os bigodes despeitados, e estirou-se todo num banho de inveja e admiração. De inveja alheia, note bem; ele carecia desse sentimento ruim. A inveja e a admiração do; outros é que lhe davam ainda agora uma delícia íntima. A princesa do baile entregava-se-lhe. Definia assim a superioridade de Sofia, posto lhe conhecesse um defeito capital,-a educação. Achava que as maneiras polidas da moça vinham da imitação adulta, após o casamento, ou pouco antes, que ainda assim não subiam muito do meio em que vivia.
CAPÍTULO LXXV OUTRAS MULHERES vieram ali,- as que o preferiam aos demais homens no trato e na contemplação da pessoa. Se as requestava ou requestara todas? Não se sabe. Algumas, váé certo, porém, que se deleitava com todas elas. Tais havia de provada honestidade que folgavam de o trazer ao pé de si, para gostar o contacto de um belo homem, sem a realidade em o perigo da culpa,-como o especta-dor que se regala das paixões de Otelo, e sai do teatro com as mãos limpas da morte de Desdêmona. Vinham todas rodear o leito de Carlos Maria, tecendo-lhe a mesma grinalda. Nem todas seriam moças em flor; mas a distinção supria a juvenilidade. Carlos Maria recebia-as como um deus antigo devia receber, quieto no mármore, as lindas devotas e suas oferendas. No burburinho geral distinguia as vozes de todas,-não todas a um tempo,-mas às três e às quatro. A derradeira delas foi a da recente Sofia; escutou-a ainda namo-rado, mas sem o alvoroço do princípio, porque a lembrança das outras donas, pessoas de qualidade, diminuía agora a importância desta. Contudo, não podia negar que era mui atrativa e que valsava perfeitamente. Chegaria a amar com força? Nisto apareceu-lhe outra vez a mentira da praia . Levantou-se aborreci do da cama . "Que diabo me mandou dizer semelhante cousa?" Tornou a sentir o desejo de restabelecer a verdade- e desta vez mais seriamente que da outra. Mentir, pensava ele, era para os lacaios e seus congêneres. Daí a meia hora, trepava ao cavalo e saía de casa, que era na Rua dos Inválidos. Catete adiante, lembrou-se que a casa de Sofia era na Praia do Flamengo; nada mais natural que torcer a rédea, descer uma das ruas perpendiculares ao mar, e passar pela porta da valsista. Achá-la-ia talvez à janela; vê-la-ia corar, cumprimentá-lo. Tudo isto passou pela cabeça ao rapaz, em poucos segundos; chegou a dar um jeito à rédea, mas a alma,-não o cavalo,-a alma empinou; era ir muito depressa atrás dela. Deu outro jeito à rédea, e continuou o passeio.
CAPÍTULO LXXVI MONTAVA BEM. Toda a gente que passava, ou estava às portas, não se fartava de mirar a postura do moço , o garbo , a tranqüilidade régia com que se deixava ir. Carlos Maria,-e este era o ponto em que cedia à multidão,-recolhia as admirações todas, por ínfimas que fossem. Para adorá-lo, todos os homens faziam parte da humanidade.
CAPÍTULO LXXVII -JÁ DE PÉ! repetiu Sofia, ao ver a prima lendo os jornais. Maria Benedita teve um sobressalto, mas aquietou-se logo; dormira mal, e acordou cedo. Não estava para aquelas folias at tão tarde, disse ela; mas a outra replicou logo que era preciso acostumar-se, a vida do Rio de Janeiro não era a mesma da roça, dormir com as galinhas e acordar com os galos. Depois perguntou-lhe que impressões trouxera do baile; Maria Benedita levantou os ombros com indiferença, mas verbalmente respondeu que boas. As palavras saíam-lhe poucas e moles. Sofia, entretanto, ponderou-lhe que dançara muito, salvo polcas e valsas. E por que não havia de polcar e valsar também? A prima lançou-lhe uns olhos maus. -Não gosto. -Qual não gosta! É medo. -Medo? -Falta de costume, explicou Sofia. -Não gosto que um homem me aperte o corpo ao seu corpo, e ande comigo, assim, à vista dos outros. Tenho vexame. Sofia tornou-se séria; não se defendeu nem continuou, falou da roça, perguntou se era certo o que lhe dissera Cristiano, que ela queria ir para casa. Então a prima, que folheava os jornais, à toa, respondeu animadamente que sim; não podia viver sem a mãe. -Mas por quê? Você não estava tão contente conosco? Maria Benedita não disse nada; passeou os olhos em um dos jornais, como se procurasse alguma notícia, trincando o beiço, trêmula, inquieta. Sofia teimou em querer saber a causa daquela mudança repentina; pegou-lhe nas mãos, achou-as frias. -Você precisa casar, disse finalmente. Tenho já um noivo. Era Rubião; o Palha queria acabar por aí, casando o sócio com a prima; tudo ficava em casa, dizia ele à mulher. Esta tomou a si guiar o negócio. Acudia-lhe agora a promessa; tinha um noivo pronto. -Quem? perguntou Maria Benedita. -Uma pessoa. Crê-lo-eis, pósteros? Sofia não pôde soltar o nome de Rubião. Já uma vez, dissera ao marido havê-lo proposto, e era mentira. Agora indo a propô-lo deveras, o nome não lhe saiu da boca. Ciúmes? Seria singular que esta mulher, que não tinha amor àquele homem, não quisesse dá-lo de noivo à prima, mas a natureza é capaz de tudo, amigo e senhor. Inventou o ciúme de Otelo e o do cavaleiro Desgrieux, podia inventar este outro de uma pessoa que não quer ceder o que não quer possuir. -Mas quem? repetiu Maria Benedita. -Direi depois, deixe-me arranjar as cousas, respondeu Sofia, e mudou de conversa. Maria Benedita trocou de rosto, a boca encheu-se-lhe de riso, um riso de alegria e de esperança. Os olhos agradeceram a promessa, e disseram palavras que ninguém podia ouvir nem entender, palavras obscuras -Gosta de valsar; é o que é. Gosta de valsar quem? Provavelmente a outra. Tinha valsado tanto na véspera, com o mesmo Carlos Maria, que bem se poderia achar na dança um pretexto; Maria Benedita concluía agora que era o próprio e único motivo. Conversaram muito nos intervalos, é certo, mas naturalmente era dela que falavam, uma vez que a prima tinha a peito casá-la e só lhe pedia que deixasse arranjar as cousas. Talvez ele a achasse feia, ou sem graça. Uma vez, porém, que a prima queria arranjar as cousas... Tudo isso diziam os olhos gaios da menina.
CAPÍTULO LXXVIII RUBIÃO é que não perdeu a suspeita assim tão facilmente. Pensou em falar a Carlos Maria, interrogá-lo, e chegou a ir à Rua dos Inválidos, no dia seguinte, três vezes; não o encontrando, mudou de parecer. Encerrou-se por alguns dias; o Major Siqueira arrancou-o à solidão. Ia participar-lhe que se mudara para a Rua Dous de Dezembro. Gostou muito da casa do nosso amigo, das alfaias, do luxo, de todas as minúcias, ouros e bambinelas. Sobre este assunto discorreu longamente, relembrando alguns móveis antigos. Parou de repente, para dizer que o achava aborrecido; era natural, faltava-lhe ali um complemento. -O senhor é feliz, mas falta-lhe aqui uma cousa; falta-lhe mulher. O senhor precisa casar. Case-se, e diga que eu o engano. Rubião lembrou-se de Santa Teresa,-daquela famosa noite da conversação com Sofia, - e sentiu correr-lhe um frio pelas costas; mas a voz do major não tinha nenhum sarcasmo. Tão pouco era animada de interesse. A filha estava ainda qual a deixamos no capítulo XLIII, com a diferença que os quarenta anos vieram. Quarentona, solteirona. Gemeu-os consigo, logo de manhã, no dia em que os completou; não pôs fita nem rosa no cabelo. Nenhuma festa; tão somente um discurso do pai, ao almoço, lembrando-lhe a vida de criança, anedotas da mãe e da avó, um dominó de baile de máscaras, um batizado de 1848, a solitária de um Coronel Clodomiro, várias cousas assim de mistura, para entreter as horas. D. Tonica mal podia ouvi-lo; metida em si mesma, ia roendo o pão da solitude moral, ao passo que se arrependia dos últimos esforços empregados na busca de um marido. Quarenta anos; era tempo de parar. Nada disso lembrava agora ao major. Era sinceroachou que a casa de Rubião não tinha alma. E repetiu, ao despedir-se -Case-se, e diga que eu o engano.
CAPÍTULO LXXIX -E POR QUE NÃO? perguntou uma voz, depois que o major saiu. Rubião, apavorado, olhou em volta de si; viu apenas o cachorro, parado, olhando para ele. Era tão absurdo crer que a pergunta viria do próprio Quincas Borba,-ou antes do outro Quincas Borba, cujo espírito estivesse no corpo deste, que o nosso amigo sorriu com desdém, mas, ao mesmo tempo, executando o gesto do capítulo XLIX, estendeu a mão, e coçou amorosamente as orelhas e a nuca do cachorro,- ato próprio a dar satisfação ao possível espírito do finado. Era assim que o nosso amigo se desdobrava, sem público, diante de si mesmo.
CAPÍTULO LXXX MAS A VOZ repetiu-E por que não?-Sim; por que não havia de casar, continuou ele raciocinando. Mataria a paixão que o ia comendo aos poucos, sem esperança nem consolação. Demais, era a porta de um mistério. Casar, sim, casar logo e bem. Estava ao portão, quando esta idéia começou a abotoar; foi dali para dentro, subindo os degraus de pedra, abrindo a porta, sem consciência de nada. Ao fechar a porta, é que um pulo do Quincas Borba, que o viera acompanhando, fê-lo dar por si. Onde ficara o major? Quis descer para vê-lo, mas advertiu a tempo que acabava de o acompanhar até à rua. As pernas tinham feito tudo; elas é que o levaram por si mesmas, direitas, lúcidas, sem tropeço, para que ficasse à cabeça tão-somente a tarefa de pensar. Boas pernas! pernas a muletas naturais do espírito! Santas pernas! Elas o levaram ainda ao canapé, estenderam-se com ele, devagarinho, enquanto o espírito trabalhava a idéia do casamento. Era um modo de fugir a Sofia; podia ser ainda mais. Sim, podia ser também um modo de restituir à vida a unidade que perdera, com a troca do meio e da fortuna; mas esta consideração não era propriamente filha do espírito nem das pernas, mas de outra causa, que ele não distinguia bem nem mal, como a aranha. Que sabe a aranha a respeito de Mozart? Nada; entretanto, ouve com prazer uma sonata do mestre. O gato, que nunca leu Kant talvez um animal metafísico. Em verdade, o casamento podia ser o laço da unidade perdida. Rubião sentia-se disperso; os próprio amigos de trânsito, que ele amava tanto, que o cortejavam tanto, davam-lhe à vida um aspecto de viagem, em que a língua mudasse com as cidades, ora espanhol, ora turco. Sofia contribuía para esse e era tão diversa de si mesma, ora isto, ora aquilo, que os dias iam passando sem acordo fixo, nem desengano perpétuo. Rubião não tinha que fazer; para matar os dias longos e vazios, ia às sessões do júri, à Camara dos Deputados, à passagem dos batalhões, dava grandes passeios, fazia visitas desnecessárias, à noite, ou ia aos teatros, sem prazer. A casa era ainda um bom repouso ao espírito, com o seu luxo rutilante e os sonhos que vagavam no ar. Ultimamente, ocupava-se muito em ler; lia romances, mas só os históricos de Dumas pai, ou os contemporâneos de Feuillet, estes com dificuldade, por não conhecer bem a língua original. Dos primeiros sobravam traduções. Arriscava-se a algum mais, se lhe achava o principal dos outros, uma sociedade fidalga e régia. Aquelas cenas da corte de França, inventadas pelo maravilhoso Dumas, e os seus nobres espadachins e aventureiros, as condessas e os duques de Feuillet, metidos em estufas ricas, todos eles com palavras mui compostas polidas, altivas ou graciosas, faziam-lhe passar o tempo às carreiras Quase sempre, acabava com o livro caído e os olhos no ar, pensando. Talvez algum velho marquês defunto lhe repetisse anedotas de outras eras.
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