QUINCAS BORBA - CAPÍTULO 111 AO 120

SEGUIMOS COM OS DESTAQUES DA LEITURA DO LIVRO QUINCAS BORBA - DE MACHADO DE ASSIS. Insira seu comentário com seus destaques.
Escreva seu primeiro nome no início ou final do comentário

Link para o livro: http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/Quincas%20Borba.pdf

CAPÍTULO CXI
RUBIÃO aplaudiu o artigo; achava-o excelente. Talvez pouco enérgico. Vendilhões, por exemplo, era bem dito; mas ficava melhor vis vendilhões. -Vis vendilhões? Há só um inconveniente, ponderou Camacho. É a repetição dos vv. Vis ven... Vis vendilhões; não sente que o som fica desagradável? -Mas lá em cima há vés vis... -Voe victis. Mas é uma frase latina. Podemos arranjar outra cousa; vis mercadores. -Vis mercadores é bom. -Contudo, mercadores não tem a força de vendilhões. -Então, por que não deixa vendilhões? Vis vendilhões é forte; ninguém repara no som. Olhe, eu nunca dou por isso. Gosto de energia. Vis vendilhões -Vis vendilhões, vis vendilhões, repetiu Camacho, à meia voz. Já estou achando melhor. Vis vendilhões. Aceito, concluiu emendando. E releu Os vis vendilhões serão expulsos do templo; ficarão os crentes e os puros, os que põem acima dos interesses mesquinhos, locais e passageiros a vitória. indefectível dos princípios. Tudo que não for isto ter-nos-á contra si. Alea Zacta est. -Muito bem! disse Rubião, sentindo-se algum tanto autor de artigo. -Parece-lhe bem? perguntou Camacho, sorrindo. Há pessoas que ainda me acham no estilo a frescura do meu tempo de estudante Não sei, não digo nada; a disposição, sim, é a mesma. Hei de castigá-los; havemos de castigá-los.

CAPÍTULO CXII AQUI É QUE EU QUISERA ter dado a este livro o método de tantos outros,-velhos todos,-em que a matéria do capítulo era posta no sumário"De como aconteceu isto assim, e mais assim." Aí está Bernardim Ribeiro; aí estão outros livros gloriosos. Das línguas estranhas, sem querer subir a Cervantes nem a Rabelais, bastavam-me Fielding e Smollet, muitos capítulos dos quais só pelo sumário estão lidos. Pegai em Tom Jones, livro IV, cap. I, lede este título Contendo cinco folhas de pape. É claro, é simples, não engana a ninguém; são cinco folhas, mais nada, quem não quer não lê, e quem quer lê, para os últimos é que o autor concluiu obsequiosamente"E agora, sem mais prefácio, vamos ao seguinte capítulo".

CAPÍTULO CXIII SE TAL FOSSE O MÉTODO deste livro, eis aqui um título que explicaria tudo"De como Rubião, satisfeito da emenda feita no artigo, tantas frases compôs e ruminou, que acabou por escrever todos os livros que lera". Lá haverá leitor a quem só isso não bastasse. Naturalmente, quereria toda a análise da operação mental do nosso homem, sem advertir que, para tanto, não chegariam as cinco folhas de papel de Fielding. Há um abismo entre a primeira frase de que Rubião era co-autor até a autoria de todas as obras lidas por ele; é certo que o que mais lhe custou foi ir da frase ao primeiro livro;-deste em diante a carreira fez-se rápida. Não importa; a análise seria ainda assim longa e fastiosa. O melhor de tudo deixar só isto; durante alguns minutos, Rubião se teve por autor de muitas obras alheias.

CAPÍTULO CXIV AO CONTRÁRIO, não sei se o capítulo que se segue poderia estar todo no título.

CAPÍTULO CXV RUBIÃO foi mantendo o propósito de não tornar a ver Sofia; pelo menos, não ia ao Flamengo. Viu-a um dia passar de carro, com uma das damas da comissão das Alagoas; ela inclinou-se risonha, dizendo-lhe adeus com a mão. Ele retribuiu o cumprimento, tirando o chapéu, com tal ou qual alvoroço, mas não ficou parado como lhe aconteceria dantes; apenas lançou um olhar ao carro que ia andando. Também ele foi andando,-e pensando no lance da carta , não compreendendo aquele gesto de mão, sem ódio nem vexame,-como se nada houvesse entre eles. Podia ser que o serviço da comissão e a companheira que levava explicassem a benevolência graciosa de Sofia; mas Rubião não cogitou desta hipótese. -Estará assim tão falta de brio? perguntava ele. Pois não se lembra da carta que achei, mandada por ela ao tal gamenho da Rua dos Inválidos? É muito; é demais. Parece um desafio, um modo de dizer que não faz caso, que escreverá todas as cartas que quiser. Que as escreva, mas gaste algum dinheiro em registrá-las no correio; é barato. . . Achou algum pico em si mesmo, e riu-se. Isto, e um homem que passou rasgando-lhe uma cortesia, tiraram-lhe o amargor das saudades, e ele esqueceu o assunto, para cuidar de outro, que o levava ao Banco do Brasil. Ao entrar no Banco esbarrou no sócio, que saiu. -Creio que vi agora D. Sofia, disse-lhe Rubião. -Onde? -Na Rua dos Ourives; ia de carro, com outra senhora, que não conheço. Como tem você passado? -Viu-a, e não se lembrou de nada, observou Palha, sem responder à pergunta. Não se lembrou que ela faz anos, quarta-feira, depois de amanhã. Não lhe peço que vá jantar, não ouso tanto, seria convidá-lo a aborrecer-se; mas uma xícara de chá bebe-se depressa. Faz-me esse favor? Rubião não respondeu logo. -Vou até jantar, disse finalmente. Quarta-feira? Conte comigo. Tinha-me esquecido, confesso; mas ando com tanta cousa na cabeça. Espere por mim daqui a meia hora, no armazém. Antes de meia hora estava lá, pedindo-lhe dous contos de réis. Palha já não resistia ao desmoronamento do capital; e, se uma ou outra vez, dizia alguma palavrinha frouxa, agora entregou-lhe o dinheiro com indiferença. Rubião não tornou à casa sem comprar um magnífico brilhante, que, na quarta-feira, enviou a Sofia, acompanhado, um bilhete de visita, e duas palavras de felicitação. Sofia estava só, no quarto de vestir, calçando os sapatos, quando a criada lhe entregou o pacote. Era o terceiro presente do dia; a criada esperou que ela o abrisse para ver também o que era. Sofia ficou deslumbrada, quando abriu a caixa e deu com a rica jóia, - uma bela pedra, no centro de um colar. Esperava alguma cousa bonita; mas, depois dos últimos sucessos, mal podia crer que ele fosse tão generoso. Batia-lhe o coração. -O portador está aí? -Já foi. Que bonito, minha ama! Sofia fechou a caixa, e acabou de calçar-se. Deteve-se algum tempo, sentada, sozinha, recordando cousas idas, e levantou-se pensando "Aquele homem adora-me". Tratou de vestir-se; mas, ao passar por diante do espelho, deixou-se estar alguns instantes. Comprazia-se na contemplação de si mesma, das suas ricas formas, dos braços nus de cima a baixo, dos próprios olhos contempladores. Fazia vinte e nove anos, achava que era a mesma dos vinte e cinco, e não se enganava. Cingido e apertado colete, diante do espelho, acomodou os seios com amor, e deixou espraiar-se o colo magnífico. Lembrou-se então de ver como lhe ficava o brilhante; tirou o colar e pô-lo ao pescoço. Perfeito. Voltou-se da esquerda para a direita e vice-versa, aproximou-se, afetou-se, aumentou a luz do camarim; perfeito. Fechou a jóia e guardou-a. "Aquele homem adora-me", repetiu. "Provavelmente, ele lá estará, pensou Rubião indo jantar ao Flamengo; duvido que tenha dado melhor presente que eu". Carlos Maria lá estava, efetivamente, conversando, entre uma das comissárias das Alagoas, e Maria Benedita. Poucos eram os convivas; houve propósito em escolher e limitar. Não estava ali o Major Siqueira, nem a filha, nem as senhoras e os homens que Rubião conheceu naquele outro jantar de Santa Teresa. Da comissão das Alagoas viam-se algumas damas; via-se mais o diretor do banco,- o da visita ao ministro,-com a senhora e as filhas,-outro personagem bancário, um comerciante inglês, um deputado, um desembargador, um conselheiro, alguns capitalistas, e pouco mais. Posto que evidentemente gloriosa, Sofia esqueceu por um instante os outros, quando viu Rubião entrar na sala e caminhar para ela. Ou mudança, ou descostume, achou-lhe outro ar, passo firme, cabeça levantada, o avesso, em suma, do antigo gesto encolhido e diminuto. Sofia apertou-lhe a mão com força e sussurrou um agradecimento. A mesa fê-lo sentar ao pé de si, tendo do outro lado a presidente da comissão. Rubião olhava superiormente para tudo. A qualidade dos convivas não lhe produziu impressão, nem o ar cerimonioso, nem o luxo da mesa; nada disso o deslumbrou. O mesmo cuidado particular de Sofia, embora lhe fosse agradável, não o tonteava, como outrora. E da parte dela era mais apurada a atenção, e os olhos excepcionalmente meigos e serviçais. Rubião procurou Carlos Maria; lá estava entre as mesmas moças da sala,-Maria Benedita e a comissária das Alagoas. Verificou que só se ocupava com elas, não olhava para Sofia, nem esta para ele. "Talvez disfarcem", pensou. Pareceu-lhe, ao levantarem-se da mesa, que trocavam um olhar; mas o movimento geral da reunião podia iludi-lo, e Rubião não fez maior cabedal da observação. Sofia dera-se pressa em tomar-lhe o braço. De caminho, disse-lhe ela -Tenho esperado pelo senhor desde aquele dia, e nunca mais veio aqui. Era meu direito exigi-lo, para explicar-me. Logo falaremos. Rubião foi daí a pouco para o gabinete dos fumantes. Ouviu calado, com os olhos erradios. Quando os outros saíram. Rubião deixou-se estar só, meio reclinado em um sofá de couro, sem pensar. A imaginação é que fazia o seu ofício, um tanto pachorrenta, agora, -talvez porque ele tivesse comido muito. Lá fora iam entrando os convidados da noite; enchia-se a casa, crescia o burburinho da conversação, sem que o nosso amigo descesse dos seus belos sonhos. O próprio som do piano, que fez calar todos os rumores, não o atraiu à terra. Mas um farfalhar de sedas, entrando no gabinete, fê-lo erguer-se de golpe, acordado. -Aí está, disse Sofia, recolhe-se aqui para fugir ao aborrecimento; nem quer ouvir boa música. Pensei que tivesse ido embora. Vim ter com o senhor. E sem mais demora, porque não podia perder um minuto, referiu-lhe o que sabemos da carta achada no jardim de Botafogo; lembrou-lhe que, antes de a abrir, pedira-lhe que ele mesmo a abrisse e lesse. Que melhor prova de inocência? A palavra saía-lhe rápida, séria, digna e comovida. Ocasião houve em que os olhos se lhe tornaram úmidos; ela enxugou-os, e ficaram vermelhos. Rubião pegou-lhe na mão, e viu ainda uma lágrima,-uma pequena lágrima,-escorregar até o canto da boca. Jurou então que sim, acreditava em tudo. Que idéia aquela de chorar? Sofia enxugou ainda os olhos, e estendeu-lhe a mão agradecida. -Até já, disse ela. O piano continuava; Rubião notou-lhe esta circunstância. Enquanto ouviam tocar, não viriam ter com eles. -Mas eu é que não posso estar ausente tanto tempo, acudiu Sofia. Demais, tenho ordens que dar. Até já -Olhe, escute, insistiu Rubião. Sofia parou. -Escute; deixe-me dizer-lhe, e não sei se pela última vez... -Pela última vez? -Quem sabe? Pode ser que última. Importa-me pouco que esse homem viva ou não, mas posso achá-lo aqui alguma vez, e não me sinto disposto a brigar. -Há de encontrá-lo todos os dias. Cristiano ainda lhe não disse o que há? Vai casar com Maria Benedita Rubião deu um passo para trás. -Casam-se, continuou ela. O fato é de admirar porque surgiu quando menos contávamos com isto; -ou eram muito fingidos, ou foi cousa que lhes deu de repente. Casam-se. Maria Benedita contou-me uma história, que me foi confirmada por outra pessoa; mas, afinal, a história é sempre a mesma. Gostaram um do outro, e adeus Casam-se brevemente. Quando ele falou a Cristiano, Cristiano respondeu que dependia de mim... Como se fosse mãe dela Consenti logo, e desejo que sejam felizes. Ele parece bom rapaz, ela é excelente criatura; hão de ser felizes, por força. E bom negócio, sabe? E1e está de posse de todos os bens do pai e da mãe. Maria Benedita não tem nada, em dinheiro; mas tem a educação que lhe dei. Há de lembrar-se que, quando veio para minha companhia, era um bicho-do-mato; não sabia quase nada; fui eu que a eduquei. Minha tia merecia tudo, e ela também. Pois, é verdade, casam-se muito breve. Não os viu hoje sempre juntos? Não há ainda participação oficial; mas os íntimos da família podem saber. Para quem tinha tanta pressa, eis aí um discurso demasiado comprido. Sofia deu por isso um pouco tarde; repetiu a Rubião que até logo, que fosse para a sala. O piano acabara; ouvia-se um burburinho discreto de aplauso e conversação.

CAPÍTULO CXVI IAM CASAR? Mas como é então quê?... Maria Benedita, -era Maria Benedita que casava com Carlos Maria; mas então Carlos Maria... Compreendia agora; era tudo engano, confusão, o que parecia ser com uma pessoa era com outra, e aí está como a gente pode chegar à calúnia e ao crime Assim reflexionava Rubião, saindo para a sala de jantar, onde os copeiros adereçavam a mesa da ceia. E continuou, andando ao comprido da sala"-Ora vejam! E o Palha queria justamente casar-me com a prima, mal sabendo que o destino lhe guardava outro noivo. Não é feio rapaz; é muito mais bonito que ela. Ao pé de Sofia, Maria Benedita vale pouco ou nada; mas a simpatia é assim mesmo... Casam-se, e breve. . . Será de estrondo o casamento? Deve ser; o Palha vive agora um pouco melhor... -e Rubião lançava os olhos aos móveis , porcelanas, cristais, reposteiros.-Há de ser de estrondo. E depois o noivo é rico..." Rubião pensou na carruagem e nos cavalos que levaria; tinha visto uma parelha soberba, no Engenho Velho, dias antes, que estava mesmo ao pintar. Ia fazer a encomenda de outra assim, fosse por que preço; tinha também de presentear a noiva. Ao pensar nela viu-a entrar na sala. -Prima Sofia onde está? perguntou ela ao Rubião. -Não sei; esteve aqui há pouco E, como a visse disposta a ir adiante, pediu-lhe uma palavra, e que se não zangasse. Maria Benedita esperou; ele, sem hesitação, deu-lhe os parabéns. Sabia que ia casar. . . Maria Benedita ficou muito vermelha, e murmurou que não divulgasse nada. Não havia então nenhum criado ali; Rubião pegou-lhe na mão e fechou-a entre as suas. -Eu sou da casa, disse; a senhora merece ser feliz, e espero que seja. Um pouco assustada, Maria Benedita puxou a mão e libertou-a; mas, para o não aborrecer, sorriu. Não era preciso tanto; ele estava encantado. Sabemos que a moça não era bonita. Pois estava linda, à força de felicidade. A natureza parecia haver posto nela as suas mais finas idéias. Sorrindo igualmente, Rubião continuou: -Foi sua prima que me disse; recomendou-me segredo. Não direi nada antes do tempo. Mas que tem que diga à senhora? A senhora é boa e merece tudo. Não é preciso esconder os olhos; casar não é vergonha. Vamos lá; levante a cabeça e ria. Maria Benedita pôs nele os olhos radiantes. -Isso! aplaudiu Rubião. Que mal há em confessar-se a um amigo? Deixe-me dizer-lhe a verdade; creio que a senhora será feliz, mas admito que ele ainda será mais feliz. Não! Verá se não é verdade; ele mesmo lhe há de dizer o que sentir, e, se for sincero, a senhora reconhecerá que eu estou apenas profetizando. Bem sei que não tem balança para medir os sentimentos; enfim, o que eu quero dizer é que a senhora é uma linda e boa criatura. . . Vá, vá-se embora; se não, fico dizendo verdades, e a senhora está corando muito... De fato, Maria Benedita corava de gosto, ouvindo a linguagem de Rubião. Em casa, achara aquiescência, nada mais. O próprio Carlos Maria não era assim terno; gostava dela com circunspecção. Falava-lhe da felicidade conjugal, como de uma taxa que ia receber do destino,-pagamento devido, integral e certo. Também não era preciso que a tratasse de outro modo, para que ela o adorasse sobre todas as cousas deste mundo. Rubião repetiu a despedida, e ficou a olhar para ela, como para uma filha. Viu-a ir assim, atravessar a sala, viva e satisfeita,-tão diversa do que achara em outros tempos, a desaparecer por uma das portas. Não pôde reter esta palavra -Linda e boa criatura!

CAPÍTULO CXVII A HISTÓRIA do casamento de Maria Benedita é curta; e, posto Sofia a ache vulgar, vale a pena dizê-la. Fique desde já admitido que, se não fosse a epidemia das Alagoas, talvez não chegasse a haver casamento; donde se conclui que as catástrofes são úteis, e até necessárias. Sobejam exemplos; mas basta um contozinho que ouvi em criança, e que aqui lhes dou em duas linhas. Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona,-um triste molambo de mulher,- chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão. Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela. -É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuía neste mundo. -Dá-me então licença que acenda ali o meu charuto? O padre que me contou isto certamente emendou o texto original, não é preciso estar embriagado para acender um charuto nas misérias alheias. Bom Padre Chagas!-Chamava-se Chagas.-Padre mais que bom, que assim me incutiste por muitos anos essa idéia consoladora, de que ninguém, em seu juízo, faz render o mal dos outros; não contando o respeito que aquele bêbado tinha ao princípio da propriedade,-a ponto de não acender o charuto sem pedir licença a dona das ruínas. Tudo idéias consoladoras. Bom Padre Chagas!

CAPÍTULO CXVIII ADEUS, PADRE CHAGAS! VOU à história do casamento. Que Maria Benedita gostava de Carlos Maria, é cousa vista ou pressentida desde aquele baile da Rua dos Arcos, em que ele e Sofia valsaram tanto. Vimo-la na manhã seguinte, pronta a ir para a roça; a prima apaziguou-a com a promessa de que lhe estava arranjando um noivo. Maria Benedita cuidou que era o valsista da véspera, e ficou esperando. Não lhe confessou nada,-por vergonha, a princípio,-e depois por lhe não fazer perder o efeito da novidade, quando Sofia houvesse de descobrir o nome da pessoa . Se confessasse desde logo, podia acontecer também que a outra afrouxasse na tarefa, e lá se perdia a causa. Não façamos caso disto, são pequenos cálculos de moça. Sobreveio a epidemia das Alagoas. Sofia organizou a comissão, que trouxe novas relações à família Palha. Incluída entre as senhoras que formavam uma das subcomissões, Maria Benedita trabalhou com todas, mas granjeou em especial a estima de uma delas, D. Fernanda, esposa de um deputado. D. Fernanda tinha pouco mais de trinta anos, era jovial, expansiva, corada e robusta; nascera em Porto Alegre, casara com um bacharel das Alagoas, deputado agora por outra província, e, segundo corria, prestes a ser ministro de Estado. A naturalidade do marido foi o pretexto para metê-la na comissão; e bem acertado foi, porque ela pedia como quem manda, não tinha acanhamento nem admitia recusa. Carlos Maria, que era seu primo, foi visitá-la logo que ela chegou ao Rio de Janeiro. Achou-a mais formosa ainda que em 1865, último ano em que a vira, e talvez fosse verdadeconcluiu que o ar do Sul era feito para enrijar as pessoas, duplicar-lhe as graças, e prometeu ir lá acabar os seus dias. -Vamos para lá, que lhe arranjarei casamento, disse ela. Conheço uma moça de Pelotas, que é um bijou, e só casa com moço da Corte -Comigo, naturalmente? -Da Corte e de olhos grandes. Olhe que não estou brincando. É uma guasca de primeira ordem. Tenho aqui o retrato dela. D. Fernanda abriu o álbum e mostrou o retrato da pessoa. -Não é feia, concordou ele. -Só? -Sim, é bonita. -Onde é que você bota os seus chinelos velhos, primo? Carlos Maria sorriu sem responder; não gostou da expressão. Quis passar a outro assunto. Mas D. Fernanda tornou ao casamento da amiga de Pelotas. Mirava o retrato, coloria-o de palavras, dizendo como eram os olhos, os cabelos, a tez; e depois fez uma pequena biografia de Sonora. Tinha este bonito nome. O padre que a batizou, hesitou em dar-lho, apesar do respeito e influência do pai da menina rico estancieiro; mas, afinal cedeu, considerando que as virtudes da pessoa podiam levar o nome ao rol dos santos. -Crê que ela vá ao rol dos santos? perguntou Carlos Maria. -Se casar com você, creio. -Não me explica nada; casando com o Diabo sucederá a mesma cousa, e com mais certeza, por causa do martírio. Santa Sonora, não é feio nome, responde bem ao sentido. Santa Sonora. . . Em todo caso, prima. .. -Você tem raça de judeu; cale-se, interrompeu ela. Recusa então a minha guasca? continuou indo pôr o álbum no seu lugar. -Não recuso; deixe-me ir indo com o meu celibato, que é meio caminho do céu. D. Fernanda soltou uma gargalhada. -Deus de misericórdia! Você acredita mesmo que vai para o céu? -Já cá estou, há vinte minutos. Pois que é esta sala, tranqüila fresca, tão longe da gente que anda lá fora? Aqui conversamos os dous, sem ouvir blasfêmias, sem aturar espíritos aleijados, tísicos, escrofulosos, insuportáveis, o próprio inferno, em suma. Aqui é o céu,- ou um pedaço do céu, uma vez que nós cabemos nele, vale pelo infinito. Conversamos de Santa Sonora, de S. Carlos Maria e de Santa Fernanda, que para contrastar com S. Gonçalo, fez-se casamenteira das moças. Onde é que há outro céu como este? -Em Pelotas. -Pelotas fica tão longe! suspirou ele estendendo as pernas e pondo os olhos no lustre da sala. -Está bom, é só a primeira investida; darei outras, até você acabar de querer. Carlos Maria sorriu e olhou para as borlas caídas do cordão de seda que ela trazia à cintura, atado por um laço frouxo; ou para ver as borlas, ou para notar a gentileza do corpo. Viu bem, ainda uma vez, que a prima era uma bela criatura. A plástica levou-lhe os olhos -o respeito os desviou; mas, não foi só a amizade que o fez demorar ainda ali, e o trouxe novamente àquela casa. Carlos Maria amava a conversação das mulheres, tanto quanto, em geral, aborrecia a dos homens. Achava os homens declamadores, grosseiros, cansativos, pesados, frívolos, chulos, triviais. As mulheres, ao contrário, não eram grosseiras, nem declamadoras, riem pesadas. A vaidade nelas ficava bem, e alguns defeitos não lhes iam mal; tinham, ao demais, a graça e a meiguice do sexo. Das mais insignificantes, pensava ele, há sempre alguma cousa que extrair. Quando as achava insípidas ou estúpidas, tinha para si que eram homens mal acabados. Entretanto, as relações de D. Fernanda e Maria Benedita iam-se estreitando. Esta, além de acanhada, anda triste por aquele tempo; foi justamente a disparidade de caráter e de situação que as prendeu uma à outra. D. Fernanda possuía, em larga escala, a qualidade da simpatia; amava os fracos e os tristes, pela necessidade de os fazer ledos e corajosos. Contavamse dela muitos atos de piedade e dedicação. -A senhora que tem? perguntou ela um dia à amiguinha. Quase nunca ri, anda sempre com os olhos espantados, pensando.. Maria Benedita respondeu que não tinha nada, que era o seu modo; e sorria dizendo isto, por simples condescendência. Aludiu à perda da mãe, como uma das causas de suas melancolias. D. Fernanda entrou a levá-la a toda parte, a trazê-la para jantar, a dar-lhe lugar no camarote, se ia ao teatro, e graças a isso, e ao seu gênio galhofeiro, sacudiu da alma da moça os corvos aborrecidos que lá avoejavam. Costume e afeição depressa as fizeram íntimas. Não obstante, Maria Benedita continuou a calar o seu mistério. "Seja qual for o mistério, pensou um dia D. Fernanda, acho que o melhor é casá-la com o Carlos Maria; a Sonora que espere." -Você precisa casar, Maria Benedita, disse-lhe dali a dous dias, de manhã, na chácara, em Mata-Cavalos; Maria Benedita tinha ido ao teatro com ela e passara lá a noite.-Não quero estremecimentos; precisa casar e há de casar... Desde anteontem que estou para lhe dizer isto, mas estas cousas conversadas em sala ou na rua, não têm força. Aqui na chácara é diferente. E se você tem animo de trepar comigo um pedaço do morro, então é que ficaremos bem. Vamos? -Está fazendo calor. . . -É mais poético, menina. Ah! carioca sem sangue! Vocês só têm água nas veias. Pois fiquemos aqui neste banco. Sente-se, assim, eu fico aqui ao pé, armada para tudo. Casa ou morre. Não me replique Você não é feliz,-continuou mudando o tom; por mais que faça, eu vejo que você passa a vida sem gosto. Venha cá, diga-me com franqueza, tem inclinação a alguém? Se tem, confesse, que eu mando procurar a pessoa. -Não tenho. -Não? Pois é justamente o que nos serve. Não precisa pôr escritos no coração; conheço um bom inquilino. Maria Benedita voltou-se de todo para ela, com os lábios entreabertos e os olhos escancarados. Parecia recear da proposta ou ansiar por ela. D. Fernanda, não atinando com o verdadeiro estado da amiga, pegou-lhe na mão primeiro, e pediu que lhe dissesse tudo. De força que amava a alguém, era claro, via-se-lhe nos olhos, cumpria confessá-lo, instava, rogava, - intimaria, se preciso fosse. A mão de Maria Benedita esfriara, os olhos cavavam o chão, e, por alguns instantes, nenhuma delas disse nada. -Vamos, fale, repetiu D. Fernanda. -Não tenho que dizer. D. Fernanda fazia gestos de incredulidade, apertava-a cada vez mais, passou-lhe a mão pela cintura, e ligou-a muito a si; disse-lhe baixinho, dentro do ouvido, que era como se fosse sua própria mãe. E beijava-a na face, na orelha, na nuca, encostava-lhe a cabeça ao ombro, acarinhava-a com a outra mão. Tudo, tudo, queria saber tudo. Se o namorado estava na lua, mandaria buscá-lo à lua,-fosse onde fosse,-exceto no cemitério, mas, se estivesse no cemitério, dar-lhe-ia outro muito melhor, que faria esquecer o primeiro em pou-cos dias. Maria Benedita ouvia agitada, palpitante, não sabendo por onde escapasse,-prestes a dizer, e calando a tempo, como se defendesse o seu pudor. Não negava, não confessava- mas, como também não sorria, e tremia de comoção, era fácil adivinhar meia verdade, ao menos. -Mas então não sou sua amiga, não tem confiança em mim? Faça de conta que sou sua mãe. Maria Benedita pouco mais resistiu; gastara as forças e sentia a necessidade de revelar alguma cousa. D. Fernanda escutou-a comovida. O sol vinha já lambendo as cercanias do banco, não tardou que lhes trepasse aos sapatos, à barra dos vestidos e aos joelhos; mas nenhuma deu por ele. O amor as absorvia; a exposição de uma tinha para a outra um enlevo raro. Era uma paixão não sabida, não compartida, não adivinhada; paixão que ia perdendo de índole e de espécie para se converter em adoração pura. A princípio, quando ela via a pessoa amada, passava por dous estados mui diversos,-um que não podia definir, alvoroço, tonteira, pancadas no coração, quase um desmaio; o segundo era de contemplação. Agora era quase que só este. Tinha chorado muito, consigo, perdera noites e noites de saudades; pagou caro a ambição das suas esperanças. Mas não perderia nunca a certeza de que ele era superior a todos os demais homens; um ente divino, que, ainda não fazendo caso dela, mereceria sempre ser adorado. -Bem, disse D. Fernanda, quando a amiga se calou de todo. Vamos ao essencial, que é não ficar penando à toa. Não, queridinha, isto de adorar a um homem que não faz caso da gente, é poesia. Deixe-se de poesia. Olhe que só você perde no negócio, porque ele casa com outra, os anos passam, a paixão monta na garupa deles, e um dia, quando você menos pensar, acorda sem amor nem marido. E quem é esse bárbaro? -Isso não digo, respondeu Maria Benedita, levantando-se do banco. -Pois não diga, acudiu D. Fernanda, pegando-lhe nos pulsos e fazendo-a sentar nos seus joelhos. A questão principal casar;- não podendo ser com esse será com outro. -Não, não caso. -Só com ele? -Nem sei se com ele, respondeu Maria Benedita, depois de alguns instantes. Gosto dele, como gosto de Deus, que está no Céu. -Virgem Santíssima! Que blasfêmia! Duas blasfêmias, menina; a primeira é que não se deve amar a ninguém como a Deus,-a segunda é que um marido, ainda sendo mau, sempre é melhor que o melhor dos sonhos.

CAPÍTULO CXIX "UM MARIDO, ainda mau, é sempre melhor que o melhor dos sonhos." A máxima não era idealista; Maria Benedita protestou contra ela. Pois não era melhor sonhar que chorar? Os sonhos acabam ou alteram-se, enquanto que os maus maridos podem viver muito.-.A senhora diz isso, concluiu Maria Benedita, porque Deus lhe destinou um anjo... Olhe, lá vem ele. -Deixe estar que há de ter também o seu anjo, conheço um magnífico para você; todos os anjos me procuram. Teófilo, marido de D. Fernanda, que as vira a distância, veio ter com elas; trazia na mão um diário amarrotado. Não saudou a hóspede; foi direito à mulher. -Você quer saber o que me fizeram, Nanã? disse ele com os dentes cerrados. Saiu hoje o meu discurso do dia 5. Veja esta frase eu tinha ditoNa dúvida abstém-te, é o conselho do sábio. E puseramNa dívida abstém-te... É insuportável! Nota que tratava-se justamente de um crédito do Ministério da Marinha, alegando-se no debate que muitas despesas estavam feitas. De modo que pode parecer chulice da minha parte; é como se aconselhasse o calote. Em todo caso, é disparate. -Mas você não leu as provas? -Li, mas o autor é o menos apto para as ler bem. Na dívida abstém-te, continuou ele com os olhos na folha. E bufando-Isto só com... Estava consternado. Era homem de talento, de gravidade e de trabalho; mas, naquele instante, todas as grandes obras, os mais temerosos problemas, as batalhas mais decisivas, as revoluções mais profundas, o sol e a lua, e todas as constelações, e todas as alimárias e todas as gerações humanas, valiam menos do que a troca de um u por um i. Maria Benedita olhava para ele sem entendê-lo. Cuidava padecer a maior tristura; mas ali estava outra tão grande como a sua, e muito mais aflitiva. Assim, a melancolia roaz de uma pobre criatura era tanto como um erro tipográfico. Teófilo, que só então deu por ela, estendeu-lhe a mão; estava fria. Ninguém finge as mãos frias; devia padecer deveras. Instantes depois, atirou a folha ao chão, com um gesto violento, e foi-se embora. -Mas, Teófilo, emenda-se amanhã, disse-lhe D. Fernanda, levantando-se. Teófilo, sem voltar atrás, deu de ombros, desesperado. A mulher correu a ele; a amiga seguiu-a espantada. Ficou só o banco, já agora livre delas, recebendo em cheio os raios do sol, que não ama nem faz discursos. D. Fernanda levou o marido para um gabinete, e, à força de beijos, consolou-o daquele golpe. Ao almoço, já ele sorria, ainda que de um sorriso pálido; a mulher, para desviá-lo da preocupação, aventou o plano de casar Maria Benedita, e havia de ser com um deputado, se existisse na Câmara algum solteiro, qualquer que fosse a opinião. Podia ser governista, oposicionista, ambas as cousas, ou nada,-contanto que fosse marido. Sobre este tema fez algumas reflexões, vivas, lépidas, que encheram o tempo e destinavamse a matar a lembrança da troca de letras. Pia criatura! Teófilo, entendendo a mulher, ia-se fazendo alegre, e concordava na conveniência de casar Maria Benedita. -O pior, acudiu a mulher olhando para a alguém, cujo nome não quer dizer. -Nem é preciso, atalhou o marido enxugando os beiços; vê-se bem que ela gosta de teu primo.

 CAPÍTULO CXX No Domingo seguinte, D. Fernanda foi à igreja de Santo Antônio dos Pobres. Acabada a missa, viu surgir do movimento dos fiéis que se cumprimentavam entre si, ou saudavam o altar, nada menos que o primo, erecto, risonho, gravemente trajado, estendendo-lhe a mão. -Veio também à missa? perguntou espantada. -Vim. -Vem sempre? -Nem sempre, muitas vezes. -Francamente, não esperava tanta devoção em você. Os homens são, em geral, uns ímpios. Teófilo não pisa na igreja, a não ser para batizar os filhos. Você então é religioso? -Não posso responder com certeza; mas tenho horror à banalidade. que é dizer mal da religião. E basta; vim à missa, não vim confessar-me; agora vou conduzi-la a casa, e, se me oferecer almoço, almoçarei com vocês. Salvo se quiserem vir almoçar comigo; é nesta rua, como sabe. -Iria eu só, se pudesse ser. para lhe dar uma notícia muito comprida. -Vamos então devagar, disse Carlos Maria à porta da igreja, oferecendo-lhe o braço. E dous passos adiante-Notícia importante? -Importante e deliciosa. -Querem ver que Deus, sempre misericordioso, vai levar para si o nosso querido Teófilo, deixando aqui ao desamparo a mais gentil de todas as viúvas. . . Não precisa fazer essa cara, prima; deixe estar o braço. Vamos à notícia. Chegou a moça de Pelotas, aposto? -Não direi o que é, se você me não jurar ouvir seriamente. -Seriamente. D. Fernanda confessou-lhe que hesitava em casá-lo com a patrícia de Pelotas; não queria remorsos; descobrira aqui alguém que tinha ao primo um imenso amor. Carlos Maria sorriu, iniciou um gracejo, mas a notícia esporeou-lhe o espírito. Imenso amor? Imenso amor, paixão violenta, confirmou a prima, acrescentando que talvez a definição já não coubesse bem ao atual sentimento da pessoa. Agora era uma adoração quieta e calada. Tinha chorado por ele noites e noites, enquanto as esperanças lhe duraram... E D. Fernanda foi assim repetindo a confidência de Maria Benedita. Restava só o nome; Carlos Maria quis sabê-lo, ela negou-lho. Não podia revelá-lo. Para que dar-lhe o gosto de saber quem era que o adorava, se não corria ao encontro da alma dela? Melhor era deixá-lo no mistério. Já não chorava agora; modesta e desambiciosa, perdera as esperanças de ser amada, e com o tempo ficou apenas uma devota, mas uma devota sem-par, que nem sequer esperava ser ouvida ou agraciada um dia por um olhar benévolo do seu deus querido. -Prima, você... -Eu quê?... Carlos Maria concluiu dizendo que a advogada era digna da causa. Realmente, se essa moça o adorava a tal ponto, era justo e natural que a prima se interessasse por ela com tanto calor. Mas por que r, dizer o nome? -Agora não digo; pode ser que algum dia. . . Mas, você compreende que me custaria muito casá-lo com a minha patrícia, sabendo que outra pessoa o ama tanto. E daí bem pode ser que esta de cá não padeça muito, se o vir casado. Sim, senhor, parece absurdo, mas e preciso conhecê-la; digo que, uma vez que você seja feliz, é capaz de abençoar a bela rival. -Já não é romantismo, é misticismo, redargüiu Carlos Maria de pois de alguns passos, com os olhos no chão. Não está nas cordas do nosso tempo. Tem alguma prova de semelhante estado da alma. -Tenho... A sua casa é aquela, não? perguntou D. Fernanda parando. -É. -Bonito prédio, e sólido. -Muito sólido. -Uma, duas, três, quatro. . . Sete janelas. O salão vai de ponta a ponta? Bem bom para um baile. E andando -Eu, se tivesse aqui uma casa maior que a minha, daria um grande baile, antes de voltar para o Rio Grande. Gosto de festas Os meus dous filhos não me dão grande trabalho. A propósito, ande com vontade de meter o Lopo no colégio; onde acharei um bom colégio? Carlos Maria pensava na devota incógnita. Estava longe, muito longe do ensino e seus estabelecimentos. Que bom que era sentir-se um deus adorado, e adorado à maneira evangélica, metida a devota no aposento, fechada a porta, em secreto, não nas sinagogas, à vista de todos. "E teu pai que vê o que se passa em secreto te dará a paga" Oh! ele daria a paga, se soubesse quem era. Casada, seria? Não, não podia ser. não iria confessá-lo a ninguém; viúva ou solteira, antes solteira. Cheirava-lhe a solteira. Em que aposento se fechava para rezar, para evocá-lo, chorá-lo e abençoá-lo? Já nem teimava pelo nome; mas o aposento, ao menos. -Onde acharei um bom colégio? repetiu D. Fernanda. -Colégio? Não sei; estou pensando na desconhecida. Compreende bem que uma pessoa que me adora, em silêncio, sem esperanças, é objeto de alguma atenção. Alta ou baixa? -Maria Benedita. Carlos Maria estacou o passo. -Aquela moça?... Não é possível. Tenho-lhe falado muitas vezes, e nunca descobri nada. Achei-a sempre fria. Há de ser engano Ouviu-lhe o meu nome? - Não, por mais que lhe pedisse. Confessou o milagre, sem nomear o santo, mas que milagre! Gabe-se de ser adorado como ninguém... De quem é aquela casa? -Você costuma exagerar as cousas, prima, pode não ser tanto. Adorado como ninguém? E de que modo soube que era eu? -Teófilo foi o primeiro que descobriu- ela, dizendo-se-lhe isto ficou como uma pitanga. Negou-o ainda depois, comigo; e desde esse dia não voltou lá a casa. Tal foi o início dos amores. Carlos Maria folgou de se ver assim amado em silêncio, e toda a prevenção se converteu em simpatia. Começou a vê-la, saboreou a confusão da moça, os medos, a alegria, a modéstia, as atitudes quase implorativas, um composto de atos e sentimentos que eram a apoteose do homem amado. Tal foi o início, tal o desfecho. Assim os vimos, naquela noite dos anos de D. Sofia, a quem ele dissera antes cousas tão doces. São assim os homens; as águas que passam, e os ventos que rugem não são outra cousa.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

QUINCAS BORBA - CAPÍTULO 21 AO 40

QUINCAS BORBA - CAPÍTULO 81 AO 100

QUINCAS BORBA - CAPÍTULO 61 AO 80