QUINCAS BORBA - CAPÍTULO 100 AO 110

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CAPÍTULO C 
 NENHUM DOS HABITUADOS da casa compareceu ao almoço. Rubião esperou ainda uns dez minutos, chegou a mandar um criado ao portão, a ver se vinha alguém. Ninguém; teve de almoçar sozinho. Em geral, não podia suportar as refeições solitárias, estava tão afeito à linguagem dos amigos, às observações, às graças, não menos que aos respeitos e considerações, que comer só era o mesmo que não comer nada. Agora, porém, era como um Saul que precisasse de algum Davi, para expelir o espírito maligno que se metera nele. Já queria mal ao portador da carta, porque a deixara cair; ignorarera um benefício. E depois, a consciência vacilava,- ia da entrega da carta à recusa e à guarda indefinida. Rubião tinha medo de saber ora queria, ora não queria ler nada no rosto de Sofia. O desejo de saber tudo era, em resumo, a esperança de descobrir que não havia nada. Davi apareceu enfim, entre o queijo e o café, na pessoa do Dr. Camacho, que voltara de Vassouras, na véspera, à noite. Como o Davi da Escritura, trazia um jumento carregado de pães, um cântaro de vinho e uni cabrito. Deixara gravemente enfermo um deputado que estava em Vassouras e preparou a candidatura do Rubião, escrevendo às influências de Minas. Foi o que Ihe disse aos primeiros golos de café. -Candidato, eu? -Pois então quem? Camacho demonstrou que não podia haver melhor. Tinha serviços em Minas, não tinha? -Alguns. -Aqui os tem de grande relevância. Mantendo comigo o órgão dos princípios, tem recebido solidariamente os golpes que me dão, além dos sacrifícios que todos fazemos pelo lado pecuniário. Sobre isto, não me diga nada. Digo-lhe que hei de fazer o que puder. Demais, o senhor é a melhor solução da divergência. -Divergência? -Sim, o Dr. Hermenegildo, de Catas-Altas, e o Coronel Romualdo; dizem que ambos, em caso de vaga, querem apresentar-se; é dividir os votos... -Seguramente; mas teimam? -Creio que não teimarão, quando eu lhes mandar daqui confir-mação dos chefes, porque foi uma das cousas que me lançaram à cara, é que eu não tinha poderes; confessei que, para aquele caso imprevisto, não; mas que possuía a confiança dos chefes, os quais me aprovariam. Creia que está feito. Então que pensa? Pensa que trabalho aqui sacrificando tempo e dinheiro, e algum talento, para não valer a um amigo, que tantas provas tem dado de fidelidade aos princípios? Oh! isso não. Hão de ouvir-me, e adotar o que lhes pro-ponho. Rubião, comovido, fez ainda outras perguntas acerca da luta e da vitória, se eram precisas despesas já, ou carta de recomendação e pedido, e como é que se havia de ter notícia freqüente do enfermo, etc. Camacho respondia a tudo; mas recomendava-lhe cautela. Em política, disse ele, uma cousa de nada desvia o curso da campanha e dá a vitória ao adversário. Contudo, ainda que não saísse vencedor, tinha Rubião a vantagem de ficar com o seu nome sufragado; e o precedente contava-se por um serviço. -Firmeza e paciência, concluiu. E logo em seguida -Eu próprio que sou, senão um exemplo de paciência e firmeza? A minha província está entregue a um grupo de bandidos; não há outro nome para a gente dos Pinheiros; e além disso (digo-lhe isto com dor e em particular) tenho amigos que me intrigam, uns ganhadores, que querem ver se o partido me repele e se me tomam o lugar. . . Uns biltres! Ah! meu caro Rubião, isto de política pode ser comparado à paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo; não falta nada, nem o discípulo que nega, nem o discípulo que vende. Coroa de espinhos, bofetadas, madeiro, e afinal morre-se na cruz das idéias, pregado pelos cravos da inveja, da calúnia e da ingratidão. . . Esta frase, caída no calor da conversa, pareceu-lhe digna de um artigo- reteve-a de memória; antes de dormir, escreveu-a em uma tira de papel. Mas, na ocasião da conversa, enquanto a repetia con-sigo para fixá-la, Rubião dizia que se animasse, que ele era homem para grandes campanhas. E não fugisse de caretas. -De caretas? Seguramente que não. Nem de papões verdadeiros, se os há. Cá os espero! Que se acautelem no dia em que subirmos! Hão de pagar tudo. Ouça-me este conselhoem política, não se per doa nem se esquece nada. Quem fez uma, paga; creia que a vingança é um prazer, continuou sorrindo- há muita delícia. .. Enfim, conta dos os males e os bens da política, os bens ainda são superiores. Há ingratos, mas os ingratos demitem-se, prendem-se, perseguem-se Rubião ouvia subjugado. Camacho impunha; faiscavam-lhe os olhos. Os anátemas brotavam-lhe como da boca de Isaías, as palmas do triunfo verdejavam-lhe nas mãos. Cada gesto parecia um princípios. Quando abria os braços, ferindo o ar, era como se desdobrasse um programa inteiro. Ia-se embriagando de esperanças, e tinha o vinho alegre. De uma vez, parou diante de Rubião -Vamos lá, deputado; ensaie um discurso, pedindo o encerra mento da discussãoSr. Presidente... Vamos, diga comigoSr. Presidente... peço a V. Ex.a... Rubião interrompeu-o, erguendo-se; teve uma espécie de vertigem. Via-se na Câmara, entrando para prestar juramento, todos os deputados de pé; e teve um calafrio. O passo era difícil. Contudo, atravessou a sala, subiu à mesa da presidência, prestou o juramento de estilo... Talvez a voz lhe fraqueasse na ocasião... 

CAPÍTULO CI FOI NESSE ESTADO que o veio achar a notícia da morte do Freitas Chorou uma lágrima às escondidas; tomou a si custear as despesas do enterro, e acompanhou o defunto, na tarde seguinte, ao cemitério A velha mãe do finado, quando o viu entrar na sala, quis ajoelhar-se aos pés dele; Rubião abraçou-a a tempo de impedir-lhe o gesto. Esse ato do nosso amigo fez grande impressão nos convidados. Um deles veio apertar-lhe a mão; depois a um canto, baixinho, contou-lhe a injustiça da demissão que recebera, dias antes; demissão acintosa, por causa de intrigas... -Imagine V. Ex.a que aquilo é (com perdão da palavra) um covil de patifes... Chegou a hora de sair o enterro; as despedidas da mãe foram dolorosas; beijos, soluços, exclamações, tudo de mistura, e lancinante. As mulheres não conseguiram arrancá-la dali- foram precisos dous homens e o emprego de força; ela gritava e teimava por tornar ao cadávermeu filho! meu pobre filho! -Um escândalo! insistia o demitido. O próprio ministro dizem que não gostou do ato; mas V. Ex.a sabe, para não desmoralizar o diretor . . . -Pan... pan... pan... soavam os martelos surdamente, pregando o caixão. Rubião acedeu ao pedido que lhe faziam de pegar em uma das argolas, e deixou o demitido. Fora, alguma gente parada; os vizinhos, às janelas, debruçavam-se uns sobre os outros, com os olhos cheios daquela curiosidade que a morte inspira aos vivos. Ao demais, havia o coupé do Rubião, que se destacava das caleças velhas Já se falava muito daquele amigo do finado, e a presença confirmou a notícia. O defunto era agora apreciado com certa consideração. No cemitério, não se contentou Rubião com deitar a pá de terra, ato em que foi primeiro, por solicitação de todosesperou que os coveiros enchessem a cova com as suas grandes pás do ofício. Tinha os olhos úmidos; acabou, saiu, ladeado pelos outros, e, à porta, com uma só chapelada para a direita e para a esquerda, saudou a todas as cabeças descobertas e curvas. Ao entrar no coupé, ainda ouviu estas palavras, a meia voz -Parece que é senador ou desembargador, ou cousa assim... 

CAPÍTULO CII ERA NOITE entrada. Rubião vinha por ali abaixo, recordando o pobre-diabo que enterrara, quando, na Rua de S. Cristóvão, cruzou com outro coupé, que levava duas ordenanças atrás. Era um ministro que ia para o despacho imperial. Rubião pôs a cabeça de fora, recolheu-a e ficou a ouvir os cavalos das ordenanças, tão iguaizinhos, tão distintos, apesar do estrépito dos outros animais. Era tal a tensão do espírito do nosso amigo, que ainda os ouvia, quando já a distância não permitia audiência. Catrapus... catrapus... catrapus... 

CAPÍTULO CIII AO SÉTIMO DIA da morte de D. Maria Augusta, rezou-se a missa de uso, em São Francisco de Paula; Rubião lá foi, lá viu Carlos Maria. Tanto bastou para precipitar a devolução da carta; três dias depois, meteu-a no bolso e correu ao Flamengo. Eram duas horas da tarde. Maria Benedita fora visitar as amigas da vizinhança, que a tinham acompanhando nos primeiros dias de aflição; Sofia estava só, vestida para sair. -Mas, não importa, disse ela convidando-o a sentar-se; fico ou saio mais tarde. Rubião retorquiu que a demora era curta; vinha dar-lhe um papel. -Em todo caso, sente-se; também se pode dar um papel sentado. Estava tão bonita, que ele hesitou em dizer-lhe as palavras duras que trazia de cor. O luto ia-lhe muito bem, e o vestido parecia uma luva. Sentada, via-se-lhe metade do pé, sapato raso, meia de seda cousas todas que pediam misericórdia e perdão. Quanto à espada daquela bainha,-assim chama à alma um velho autor,-parecia não ter gume nem campanhas; era uma ingênua faca de marfim. Rubião esteve a pique de fraquear; a primeira palavra arrastou as outras. -Que papel? perguntou Sofia. -Um papel que suponho grave, respondeu ele contendo-se;- não se recorda ou não sabe que perdeu uma carta? -Não. -Costuma escrever cartas? -Tenho escrito algumas; mas, não me lembra se grave. Deixe ver. Rubião tinha os olhos desvairados. Não disse nem fez nada. Levan-tou-se para sair, não saiu. Depois de alguns instantes de silêncio e inquietação, continuou sem raiva -Não é segredo para a senhora que lhe quero bem. A senhora sabe disto, e não me despede, nem me aceita, animame com os seus bonitos modos. Não me esqueci ainda de Santa Teresa, nem da nossa viagem no trem de ferro, quando vínhamos os dous com seu marido no meio. Lembra-se? Foi a minha desgraça aquela viagem; desde aquele dia a senhora me prendeu. A senhora é má tem gênio de cobra; que mal lhe fiz eu? Vá que não goste de mim; mas, podia desenganar-me logo... -Cale-se, vem gente, interrompeu Sofia erguendo-se também olhando para o lado da porta. Não vinha ninguém; entretanto, podiam ouvi-lo, porque a voz do Rubião ia aquecendo e crescendo. Cresceu ainda mais. Já não pleiteava esperanças; abria e despejava a alma. -Não me importa que ouçam, bradou ele; podem ouvir-me; agora digo tudo, a senhora bota-me para fora e tudo acaba. Não, não se pode fazer sofrer assim um homem.. . -Cale-se, pelo amor de Deus! -Qual Deus! Ouça-me o resto, porque eu estou disposto a na. guardar nada... Desatinada, receando deveras que algum criado ouvisse, Sofia levantou a mão e tapou-lhe a boca. Ao contacto daquela epiderme querida, Rubião perdeu a voz. Sofia retirou a mão, e dispôs-se a deixar a sala; mas, chegando à porta, parou. Rubião caminhara até à janela, para convalescer da explosão. 

CAPÍTULO CIV SOFIA, depois de estar alguns segundos à escuta, tornou à sala, e foi sentar-se com grande rumor de saias, na otomana de cetim azul, compra de poucos dias. Rubião voltou-se, e deu com ela, abanando repreensivamente a cabeça. Antes que ele falasse, Sofia pôs o dedo na boca, pedindo-lhe silêncio; depois chamou com a mão; Rubião e obedeceu. -Sente-se naquela cadeira, disse ela; e continuou, depois de o ver sentadoTenho razão para zangar-me com o senhor; não faço, por que sei que e bom, e estou que é sincero, arrependa-se do que me disse, e tudo lhe será perdoado. Sofia bateu com o leque no lado direito do vestido para o abaixar e compor; depois levantou os braços sacudindo as pulseiras de vidro preto; finalmente, pousou-os sobre os joelhos, e, abrindo e fechando as varetas do leque, aguardou a resposta. Ao contrário do que esperava, Rubião abanou a cabeça negativamente. -Não tenho de que me arrepender, disse ele; e prefiro que me não perdoe. A senhora ficará cá dentro, quer queira, quer não; podia mentir, mas que é que rende a mentira? A senhora é que não tem sido sincera comigo, porque me tem enganado... Sofia retesou o busto. - ...Não se zangue; não desejo ofendê-la; mas, deixe-me dizer que a senhora é que me tem enganado, e muito, e sem compaixão. Que ame a seu marido, vá; perdoava-lhe; mas que... - Mas quê? repetiu ela espantada. Rubião meteu a mão no bolso, tirou a carta, e entregou-lha. Sofia, ao ler o nome de Carlos Maria, ficou sem pinga de sangue; ele viu-lhe a palidez. Dominando-se logo, perguntou o que era, que queria dizer essa carta. -A letra é sua. -É minha. Mas que diria eu aqui dentro? continuou tranqüila. Quem lhe deu isto? Rubião quis referir o achado; mas entendeu ter alcançado o bastante; cortejou-a para sair. -Perdão, disse ela, abra o senhor mesmo a carta. -Não tenho mais nada a fazer aqui. -Fique, abra a carta, aqui a tem; leia tudo, dizia a moça pegando-lhe na manga; mas, Rubião puxou violentamente o braço, foi buscar o chapéu, e saiu. Sofia, com medo dos criados, deixou-se ficar na sala. 

CAPÍTULO CV TÃO NERVOSA esteve durante os primeiros instantes, que não cuidou da carta. Afinal, virou-a de um lado para outro, sem adivinhar o conteúdo; mas, pouco a pouso, já senhora de si, lembrou-se que devia ser a circular da comissão das Alagoas. Rasgou a sobrecartaera a circular. Como é que semelhante papel fora ter às mãos dele? E donde lhe vinha a suspeita? De si mesmo ou de fora? Correria algum boato? Foi ter com o criado que levara a circular a Carlos Maria e perguntou-lhe se a entregara. Soube que não. Quando o criado chegou à Rua dos Inválidos, não achou o papel no bolso, e, com medo, não dissera nada à ama. Sofia tornou à sala, disposta a não sair. Recolheu a carta e a sobrecarta, para mostrá-las a Rubião, a fim de que ele visse bem que não era nada; mas, provavelmente, suporia a substituição do papel. Maldito homem! murmurou. E começou a andar à toa. Uma revoada de memórias entrou na alma de Sofia. A imagem de Carlos Maria veio postar-se ante ela, com os seus grandes olhos de espectro querido e aborrecido. Sofia quis arredá-lo, mas não pôde; ele acompanhava-a de um lado para outro, sem perder o tom esbelto e másculo, sem o ar de riso sublime. Às vezes, via-o inclinar-se, articulando as mesmas palavras de certa noite de baile, que lhe custaram a ela horas de insônia, dias de esperança, até que se perderam na irrealidade. Nunca Sofia compreendera o malogro daquela aven-tura. O homem parecia querer-lhe deveras, e ninguém o obrigava a declará-lo tão atrevidamente, nem a passar-lhe pelas janelas, alta noite, segundo lhe ouviu. Recordou ainda outros encontros, palavras furtadas, olhos cálidos e compridos, e não chegava a entender que toda essa paixão acabasse em nada. Provavelmente, não haveria nenhuma; puro galanteio;-quando muito, um modo de apurar as suas forcas atrativas... Natureza de pelintra, de cínico, de fútil. Que lhe importava o mistério? Era um sujeito fútil. Cresceu-lhe o nojo e o desdém. Chegou a rir-se dele; podia encará-lo sem remorsos. E foi andando por ali fora, vingando-se do bobo,-chamava-lhe bobo,-e fitando no ar os olhos de imaculada. Em verdade, era ocupar-se demais com tal assunto; começou a maldizer do Rubião que evocara semelhante homem do esquecimento, por causa daquela triste circular... Depois, tornou às primeiras lembranças, às palavras de Carlos Maria. Se todos a achavam bela, por que não o acharia ele, que lho disse? Talvez o tivesse a seus pés, se não se houvesse mostrado tão agradecida, tão rasteira... De repente, a criada, que estava na outra sala, ouvindo rumor de alguma cousa que se quebrava, correu à de visitas, e viu a ama, sozinha, de pé. -Não é nada, disse-lhe esta. -Pareceu-me que ouvi... -Foi aquele boneco que caiu; apanhe os cacos. -O chinês! exclamou a criada. De feito, era um mandarim de porcelana, pobre-diabo que estava muito quieto, em cima de uma estante. Sofia achou-se com ele entre os dedos, sem saber como, nem desde quando; ao cuidar na sua voluntária humilhação, teve um impulso, -parece que raiva de si mesma,-e deu com o boneco em terra. Pobre mandarim! não lhe valeu ser de porcelana; não lhe valeu sequer ser dado pelo Palha. -Mas, minha ama, como é que o chinês... -Vá-se embora! Sofia recordou todo o seu proceder diante de Carlos Maria, as aquiescências fáceis, os perdões antecipados, os olhos com que o buscava, os apertos de mão tão fortes... Era isso; tinha-se-lhe lançado aos pés. Depois, o sentimento foi mudando. Apesar de tudo, era natural que ele gostasse dela, e a conformidade moral de ambos não traria o abandono de um. Talvez a culpa fosse outra. Escavou razões possíveis, algum gesto duro e frio, alguma falta de atenção para com ele; lembrouse que, uma vez, por medo de o receber sozinha, mandou dizer que não estava em casa. Sim, podia ser isso. Carlos Maria era orgulhoso; a menor desfeita pungia-o. Soube que era mentira...Essa era a culpa. 

CAPÍTULO CVI ...OU, MAIS PROPRIAMENTE, capítulo em que o leitor, desorientado, não pode combinar as tristezas de Sofia com a anedota do cocheiro. E pergunta confuso-Então a entrevista da Rua da Harmonia Sofia, Carlos Maria, esse chocalho de rimas sonoras e delinqüentes é tudo calúnia? Calúnia do leitor e do Rubião, não do pobre cocheiro que não proferiu nomes, não chegou sequer a contar uma anedota verdadeira. É o que terias visto, se lesses com pausa. Sim, desgraçado adverte bem que era inverossímil que um homem, indo a uma aventura daquelas, fizesse parar o tílburi diante da casa pactuada. Seria pôr uma testemunha ao crime. Há entre o céu e a terra muitas mais ruas do que sonha a tua filosofia,-ruas transversais, onde o tilburi podia ficar esperando. -Bem; o cocheiro não soube compor. Mas que interesse tinha em inventar a anedota? Conduzira Rubião a uma casa, onde o nosso amigo ficou quase duas horas, sem o despedir; viu-o sair, entrar no tílburi, descer logo e vir a pé, ordenando-lhe que o acompanhasse. Concluiu que era ótimo freguês; mas, ainda assim não se lembrou de inventar nada. Passou, porém, uma senhora com um menino,-a da Rua da Saúde, -e Rubião quedou-se a olhar para ela com vistas de amor e melancolia. Aqui é que o cocheiro o teve por lassivo, além de pródigo, e encomendou-lhe as suas prendas. Se falou em Rua da Harmonia foi por sugestão do bairro donde vinham; e, se disse que trouxera um moço da Rua dos Inválidos, é que naturalmente transportara de lá algum, na véspera,-talvez o próprio Carlos Maria,-ou porque lá morasse, ou porque lá tivesse a cocheira,-qualquer outra circunstância que lhe ajudou a invenção, como as reminiscências do dia servem de matéria aos sonhos da noite. Nem todos os cocheiros são imaginativos. Já é muito concertar farrapos da realidade. Resta só a coincidência de morar na Rua da Harmonia uma das costureiras do luto. Aqui, sim, parece um propósito do acaso. Mas a culpa é da costureira- não lhe faltaria casa mais para o centro da cidade, se quisesse deixar a agulha e o marido. Ao contrário disso, ama-os sobre todas as cousas deste mundo. Não era razão para que eu cortasse o episódio, ou interrompesse o livro. 

CAPÍTULO CVII DAS REPLEXÕES de Sofia é que não há que explicar. Todas tinham o pé na verdade. Era certo e certíssimo que Carlos Maria não correspondera às primeiras esperanças,-nem às segundas e terceiras,- porque as houve em quadras diversas, ainda que menos verdes e bastas. Quanto à causa disso, vimos que Sofia, à míngua de uma, atribuiu-lhe sucessivamente três. Não chegou a pensar em alguns amores que ele porventura trouxesse e lhe tornassem insípidos quaisquer outros. Seria uma quarta causa, e talvez a verdadeira. 

CAPÍTULO CVIII DURANTE alguns meses, Rubião deixou de ir ao Flamengo. Não foi resolução fácil de cumprir. Custou-lhe muita hesitação, muito arrependimento; mais de uma vez chegou a sair com o propósito de visitar Sofia e pedir-lhe perdão. De quê? Não sabia; mas queria ser perdoado. Em todas as tentativas desse gênero, a lembrança de Carlos Maria fazia-o recuar. De certo ponto em diante, foi o próprio lapso de tempo que o tolheu; era esquisito aparecer lá um dia. como um triste filho pródigo, unicamente para suplicar o calor dos belos olhos da dona da casa. Ia ao armazém, visitar o Palha; este, ao fim de cinco semanas, reprochou-lhe a ausência; e, passados dous meses, perguntou-lhe se era formal propósito. -Tenho tido muito que fazer, acudiu Rubião; esses negócios políticos tomam todo o tempo a uma pessoa. Vou lá domingo. Sofia aparelhou-se para recebê-lo. Espiaria a ocasião de lhe dizer o que era a carta, jurando por todas as cousas santas, para que ele visse que a verdade não era contra ela. Planos perdidos; Rubião não compareceu. Veia outro domingo, vieram outros domingos... Não obstante, Sofia remeteu-lhe um dia a subscrição para as Alagoas; ele assinou cinco contos de réis. -É muito, disse-lhe o sócio, no armazém, quando ele lhe foi levar o papel. -Não dou menos. -Mas olhe que pode dar muito, sem dar tanto. Parece-lhe então que esta subscrição é feita entre meia dúzia de pessoas? Anda nas mãos de muitas senhoras e de alguns homens; está nos mostradores das lojas, na Praça do Comércio, etc. Assine menos. -Como, se está escrito? -Deste 5 pode-se fazer muito bem um 3. Três contos já é uma boa assinatura. Há maiores, m as são de pessoas obrigadas pelo cargo ou pelos milhões; o Bonfim, por exemplo, assinou dez contos. Rubião não pôde reter um risinho irônico; abanou a cabeça, e não recuou dos cinco contos. Só emendaria, escrevendo o algarismo 1 atrás,-quinze contos,-mais que o Bonfim. -Seguramente, que pode dar cinco, dez ou quinze contos, tornou o Palha; mas o seu capital precisa cautelas, você está entrando muito por ele. .. Repare que já lhe rende menos. Palha era agora o depositário dos títulos de Rubião (ações, apólices, escrituras) que estavam fechados na burra do armazém. Cobrava-lhe os juros, os dividendos e os aluguéis de três casas, que Ihe fizera comprar algum tempo antes, a vil preço, e que Ihe rendiam muito. Guardava também uma porção de moedas de ouro, porque Rubião tinha a mania de as colecionar, para a contemplação. Conhecia, mais que o dono, a soma total dos bens, e assistia aos rombos feitos na caravela, sem temporal, mar de leite. Três contos bastavam, insistiu ele; e provou a sinceridade pelo fato de ser justamente marido da fundadora da comissão. Mas o Rubião não desistiu dos cinco, aproveitou a ocasião para pedir-lhe mais dez; precisava de dez contos. Palha coçou a cabeça. -Você desculpe, disse-lhe ao cabo de alguns instantes, mas para que é que os quer? Não está certo que vai perdê- los, ou arriscá-los, ao menos? Rubião riu da objeção. -Se eu estivesse certo de que os perdia, não vinha buscá-los Pode ser arriscado, mas não é sem arriscar que se ganha. Preciso deles para um negócio,-quero dizer, três negócios. Dous são empréstimos seguros, e não passam de um conto e quinhentos. Os oito contos e quinhentos são para uma empresa. Por que abana a cabeça, se não sabe de que se trata? -Por isso mesmo. Se você me consultasse, se me dissesse que empresa e que pessoas eram, eu veria logo se podia arriscar-se; e receio muito que nada preste, a não ser o dinheiro que se perder. Lembra-se das ações daquela Companhia União dos Capitais Honestos? Disse-lhe logo que este título era enfático, um modo de embair a gente, e dar emprego a sujeitos necessitados. Você não quis crer, e caiu. As ações estão por baixo, e já este semestre não há dividendos -Pois venda justamente essas ações; contento-me com o sólido. Ou então dê-me da caixa da nossa casa. . . Passo logo por aqui, se você quiser,-ou mande-me lá a Botafogo. Caucione umas apóli-ces, se lhe parecer melhor... -Não, não faço nada, não dou os dez contos, atalhou fogosa-mente o Palha. Basta de ceder a tudo; o meu dever é resistir. Emprés-timos seguros? Que empréstimos são esses? Não vê que Ihe levam o dinheiro, e não lhe pagam as dívidas? Sujeitos que vão ao ponto de jantar diariamente com o próprio credor, como um tal Carneiro, que lá tenho visto. Dos outros não sei se Ihe devem também; é possível que sim. Vejo que é demais. Falo-lhe por ser amigo; não dirá algum dia que não foi avisado em tempo. De que há de viver, se estragar o que possui? A nossa casa pode cair. -Não cai, acudiu o Rubião. -Pode cair; tudo pode cair. Eu vi cair o banqueiro Souto, em 1864. Rubião remoía os conselhos do sócio, não por serem bons nem prováveis, mas por achar neles uma intenção maviosa, revestida de forma crua. Agradeceu-os de coração, mas rejeitou-os; precisava dos dez contos. Podia ter mais tento, dali em diante, e afirmava-lhe que seria menos fácil. De resto, possuía de sobra, tinha dinheiro para dar e vender. . . -Para vender só emendou o Palha. E, depois de um instante -Bem, agora é tarde, amanhã levo-lhe os dez contos. E por que os não há de ir buscar lá à nossa casa ao Flamengo? Que mal lhe fizemos nós? Ou que lhe fizeram elas? porque a zanga parece ser com elas, visto que o vejo aqui. Que foi, para castigá-las? concluiu rindo. Rubião desviou os olhos do sócio, cuja palavra Ihe parecia afiada de ironia,-como de pessoa que soubesse tudo, e risse dele. Quando lhos tornou, viu o mesmo semblante interrogativo, e respondeu -Não me fizeram nada; lá irei amanhã à noite. -Vá jantar. -Jantar, não posso, tenho uns amigos em casa; vou de noite. E querendo rir-Não as castigue, que não me fizeram nada. -Alguém o possui, refletiu Palha logo que ele saiu; alguém, por inveja às nossas relações.. . Também pode ser que Sofia lhe fizesse alguma para arredá-lo de casa. .. Rubião assomou outra vez à porta; não tivera tempo de chegar à esquina. Voltava para dizer que, precisando do dinheiro cedo, viria buscá-lo ao armazém; de noite iria então visitá-los. Precisava do dinheiro até às duas horas da tarde. 

CAPÍTULO CIX NESSA NOITE, Rubião sonhou com Sofia e Maria Benedita. Viu-as num grande terreiro, apenas vestidas de saia, costas inteiramente des-pidas; o marido de Sofia, armado de um azorrague de cinco pontas de couro, rematando em bicos de ferro, castigava-as despiedadamente. Elas gritavam, pediam misericórdia, torciam-se, alagadas em sangue, as carnes caíamlhes aos bocados. Agora, por que razão Sofia era a imperatriz Eugênia, e Maria Benedita uma aia sua, é o que na sei dizer com exatidão. "São sonhos, sonhos, Penseroso!" exclamava um personagem do nosso Alvares de Azevedo. Mas eu prefiro a reflexão do velho Polonius, acabando de ouvir uma fala tresloucada de Hamlet"Desvario embora, lá tem seu método". Também há me todo aqui, nessa mistura de Sofia e Eugênia; e ainda há método no que se lhe seguiu, e que parece mais extravagante. Sim, Rubião, indignado, mandou logo cessar o castigo, enforcar o Palha e recolher as vítimas. Uma delas, Sofia, aceitou um lugar na carruagem aberta que esperava pelo Rubião, e lá foram a galope, ela garrida e sã, ele glorioso e dominador. Os cavalos, que eram dous a saída, eram daí a pouco, oito, quatro belas parelhas. Ruas e janelas cheias de gente, flores chovendo em cima deles, aclamações.. Rubião sentiu que era o imperador Luís Napoleão; o cachorro ia no carro aos pés de Sofia... Tudo acabou sem fim, nem fracasso. Rubião abriu os olhos; talvez alguma pulga o mordeu; qualquer cousa"Sonhos, sonhos, Pense roso!" Ainda agora prefiro o dito de Polonius "Desvario embora, lá tem seu método!" 

CAPÍTULO CX RUBIÃO fez os dous empréstimos e o negócio. O negócio era um Empresa Melhoradora dos Embarques e Desembarques no Porto do Rio de Janeiro. Um dos empréstimos tinha por fim pagar certa conta atrasada de papel da Atalaia, dívida urgente. A folha estava ameaçada de parar. -Perfeitamente, disse Camacho, quando Rubião lhe foi levar o dinheiro à casa. Muito obrigado. Veja você como, por uma miséria desta ordem, podia emudecer o nosso órgão. São os espinhos naturais da carreira. O povo não está educado; não reconhece, não apóia os que trabalham por ele, os que descem à arena todos os dias em defesa das liberdades constitucionais. Imagine que, de momento, não dispúnhamos deste dinheiro, tudo estava perdido, cada um ia para os seus negócios, e os princípios ficavam sem o seu leal expositor. -Nunca! protestou Rubião -Tem razão; redobraremos de esforços. A Atalaia será como o Anteu da fábula. De cada vez que cair, erguer-se-á com mais vida. Dito isto, Camacho mirou o maço de notas. Um conto e duzentos não? perguntou; e meteu-o no bolso do fraque. Continuou a dizer que estavam seguros agora, a folha ia de vento em popa. Tinha certas reformas materiais em vista; foi ainda mais longe. -Precisamos desenvolver o programa, dar um empurrão aos correligionários, atacá-los, se for preciso... -Como? -Ora, como? atacando. Atacar é um modo de dizer; corrigir. É evidente que o órgão do partido está afrouxando. Chamo órgão do partido, porque a nossa folha é órgão das idéias do partido, compreende a diferença? -Compreendo. -Vai afrouxando, continuou Camacho apertando um charuto entre os dedos, antes de o acender; nós precisamos de acentuar os princípios, mas francamente, nobremente, dizendo a verdade. Creia que os chefes precisam ouvi-la a seus próprios amigos e aderentes. Nunca rejeitei a conciliação dos partidos, pugnei por ela; mas conciliação não é jogo de empulha. Para lhe dar um exemplo, na minha província a gente dos Pinheiros tem o apoio do governo, unicamente para me deslocar; e os meus correligionários da Corte, em vez de a combater, visto que o governo lhe dá força, que pensa que fazem? Dão também apoio aos Pinheiros. -Têm ao menos alguma influência os Pinheiros? -Nenhuma, respondeu Camacho fechando violentamente a caixa de fósforos que ia a abrir. Há um réu de polícia entre eles, e há outro que até foi aprendiz de barbeiro. Matriculou-se, é verdade, na Faculdade do Recife, creio que em 1855, por morte do padrinho que lhe deixou alguma cousa, mas tal é o escândalo da carreira desse homem que, logo depois de receber o diploma de bacharel, entrou na assembléia provincial. É uma besta; é tão bacharel como eu sou papa. Entenderam-se sobre as modificações políticas da folha. Camacho lembrou ao Rubião que a candidatura deste naufragara por causa justamente da oposição dos chefes. De alguns, emendou logo. Rubião concordou; assim Iho tinha dito o amigo em tempo, e a lembrança avivou o ressentimento do desastre. Podia, devia estar na Câmara. Os tais é que o não quiseram; mas haviam de ver, pensava Rubião; tinham de amargar o mal feito. Deputado, senador, ministro, vê-lo-iam tudo, com olhos tortos e espantados. A cabeça de nosso amigo, tanto que o outro lhe pôs a faísca, foi ardendo de si mesma, não por ódio, nem inveja, mas de ambição ingênua, e cordial certeza, visão antecipada e deslumbrante das grandezas. Camacho estimou achá-lo de acordo. -A nossa gente é de igual opinião, disse ele. Creio que não faz mal uma pequena ameaça aos amigos. Nessa mesma noite, leu-lhe o artigo em que advertia o partido da conveniência de não ceder às perfídias do poder, apoiando em algumas províncias certa gente corrupta e sem valor. Eis aqui a conclusão: Os partidos devem ser unidos e disciplinados. Há quem pretenda (mirabile dictu!) que essa disciplina e união não podem ir ao ponto de rejeitar os benefícios que caem das mãos dos adversários. Risum teneatis! Quem pode proferir tal blasfêmia sem que lhe tremam as carnes? Mas suponhamos que assim seja, que a oposição possa, uma ou outra vez, fechar os olhos aos desmandos do governo, à postergação das leis, aos excessos da autoridade, à perversidade e aos sofismas. Ouid inde? Tais casos,-aliás raros,-só podiam ser admitidos quando favorecessem os elementos bons, não os maus. Cada partido tem os seus díscolos e sicofantas. É interesse dos nossos adversários ver-nos afrouxar, a troco da animação dada à parte corrupta do partido. Esta é a verdade; negá-lo é provocar-nos à guerra intestina, isto é, à dilaceração da alma nacional... Mas, não, as idéias não morrem; elas são o lábaro da justiça. Os vendilhões serão expulsos do templo; ficarão os crentes e os puros, os que põem acima dos interesses mesquinhos, locais e passageiros a vit6ria indefectível dos princípios. Tudo que não for isto ter-nos-á contra si. Alea jacta est. 

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